Crítica: Aniquilação (Annihilation) | 2018

Em 2014, tive a oportunidade de efetuar uma das leituras mais mesmerizantes de minha vida. O livro era Annihilation, do escritor norte-americano Jeff VanderMeer, e como cinéfilo doente que sou, já comecei a imaginar a transição do hipnotizante (e petrificante) material para as telonas. Mas confesso que cheguei a pensar comigo mesmo que talvez não fosse possível adaptar o livro para o cinema. Acontece que, quatro anos depois, chega às telas a versão cinematográfica do aterrorizante livro de VanderMeer, sob a batuta do competente Alex Garland (da elogiada sci-fi Ex Machina: Instinto Artificial, 2015). Este Aniquilação (Annihilation, UK/EUA, 2018), não só adapta com precisão e inteligência os aspectos do livro, como também carrega uma enorme gama de seus próprios méritos, especialmente sua inacreditável concepção visual e seu fenomenal elenco feminino.

Falando em elenco, e é claro que não seria diferente dado o insuportável momento de “pseudo-empoderamento” que vivemos hoje nas mídias sociais (leia-se “mimimi”), Aniquilação sofreu com algumas críticas antes mesmo de ser lançado. O motivo, seria de que suas protagonistas, especificamente Natalie Portman e Jennifer Jason Leigh, não são descendentes de asiáticos ou nativos americanos, como são as respectivas protagonistas do livro de VanderMeer. Ou seja, de acordo com a turma do mimimi, a abordagem de Garland ao material fonte seria de certa forma, racista.

Pura falta do que fazer. Além das alegações serem medíocres por si só, o próprio Garland já havia dito que sua intenção não era fazer uma adaptação direta do livro, que na verdade é o primeiro volume de uma trilogia, chamada por aqui de Trilogia Comando Sul (e de Southern Reach Trilogy por lá). O filme de Garland, na realidade, contém elementos dos três livros da saga, sendo que a própria personagem interpretada por Portman, só aparece no segundo livro da trama sci-fi. O próprio VanderMeer também declarou que esta versão cinematográfica não segue sua obra ao pé da letra, contudo, consegue ser aterrorizante de maneiras inimagináveis até para o autor da história.

Aniquilação gira em torno da ex-militar e agora bióloga Lena (Portman), que fica com uma pulga atrás da orelha quando seu marido, Kane (Oscar Isaac, do citado Ex Machina), retorna bastante diferente do homem que costumava ser quando foi enviado à uma misteriosa missão há um ano atrás. Pouco após seu retorno, Kane fica severamente doente, e ele e Lena são levados para uma tal Área X pela organização Comando Sul, responsável por enviar Kane e sua tropa militar para a missão citada acima. Entra em cena a Dra. Ventress (Leigh), que revela para Lena que o fenômeno que atacou seu marido é algo praticamente desconhecido pela ciência. Na verdade, a única coisa que as pessoas na Área X sabem sobre o fenômeno, é que ele teve início em uma antiga casa de farol e que vem se expandindo nos três anos desde que foi descoberto e passou a ser estudado. Contudo, todos os que foram enviados para estudar a anomalia jamais retornaram. Com exceção de Kane.

Em um esforço para salvar seu marido, Lena se junta à uma nova expedição em direção ao núcleo da Área X, desta vez liderada pela Dra. Ventress, que está determinada a alcançar o farol e descobrir a origem do fenômeno. Além das duas, a expedição conta com Anya (Gina Rodriguez, da série Jane the Virgin), Josie (Tessa Thompson, de Thor: Ragnarok), e Cass (Tuva Novotny, do recente Borg vs McEnroe). No entanto, a expedição toma um rumo estranho quase que imediatamente, e as coisas vão ficando cada vez mais esquisitas à medida que a equipe aprende mais sobre a Área X e o que exatamente a anomalia está fazendo com o ambiente ao seu redor. E quanto mais adentro da Área X elas seguem, mais aumenta a sede por respostas, e também os inexplicáveis e aterrorizantes perigos ao redor.

O roteiro de Garland para a obra de VanderMeer flerta com os aspectos mais surreais do livro, contando a história de maneira não completamente linear, desorientando o espectador propositalmente. É inevitável não traçar um paralelo com a clássica sci-fi soviética Stalker, dirigida pelo grande Andrei Tarkovsky em 1979, e que por sua vez também é baseada em um conto, e que também envolve uma “expedição”, desta vez à uma área conhecida como “A Zona”, local isolado pelos militares onde coisas inexplicáveis acontecem, e onde quem entra supostamente não volta mais, ou retorna enlouquecido.

Como diretor, Garland efetua um trabalho belo e brutal, com a ajuda da fotografia de Rob Hardy (também de Ex Machina). Há uma certa dicotomia entre o que é belo e o que é horripilante dentro da Área X, e a direção de Garland faz com que as transições entre estes aspectos aconteçam de maneira natural e fluente dentro da narrativa. Com exceção de alguns elementos criados em CGI no terceiro ato do filme, o realista e orgânico design de produção à cargo de Mark Digby (também de Ex Machina e Quem Quer Ser um Milionário?) utiliza-se de excepcionais efeitos-visuais práticos, que ajudam na imersão do público no cenário surreal da Área X.

Com um forte quinteto de protagonistas femininas, Aniquilação apoia-se em seus desempenhos para transmitir a pesada carga emocional de sua trama, em contraponto com sua parcela científica. Portman é a protagonista do filme e também a que se sai melhor dramaticamente, no complexo papel de uma mulher devotada ao marido mas ao mesmo tempo fascinada pelo fenômeno que acabou de descobrir. Suas parceiras em cena também entregam performances críveis, onde cada uma das intérpretes tem seu momento para brilhar, especialmente a experiente Jennifer Jason Leigh e a ascendente Tessa Thompson. Confesso que inclusive não morro de amores pelo trabalho de Thompson, mas aqui, ela me convenceu dramaticamente.

Aniquilação é o tipo de sci-fi que realmente faz com que o público pense e reflita sobre a condição atual da humanidade e nos desígnios de seu caráter, e que ainda por cima entrega uma boa dose de sustos e horror. Garland dá vida ao mundo de VanderMeer com clareza visceral, mesmo quando o filme mergulha mais fundo nos complicados conceitos sobre o que exatamente tomou conta da Área X, de onde a anomalia vem, e o que sua existência significa para o futuro da espécie humana. Ao longo de todo o filme, Garland mistura com inteligência a aventura da expedição com as questões intelectuais que são a raiz de sua trama, honrando o gênero com louvor.

Ainda assim, Aniquilação não é para todo mundo. Sua premissa básica sobre uma expedição à um fenômeno desconhecido pode até soar aventuresca e é um excitante ponto de partida, mas o filme não é somente um “filme de monstro” (apesar de conter alguns elementos da vertente) e muito menos oferece respostas fáceis à seu público. Aniquilação é uma ficção-científica cascuda e intelectual, que marca o retorno de Alex Garland ao gênero que o revelou, e que agora o estabelece como um dos mais preparados cineastas em atividade do cinema atual. Não perca este por nada!

Depois de um acordo entre o estúdio Paramount e a Netflix, Aniquilação chegará ao Brasil através do serviço de streaming da Netflix, que atuará como distribuidora do filme fora dos EUA. O filme estreia no catálogo da produtora no dia 12 de Março.

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