Crítica: Assunto de Família (Shoplifters/Manbiki kazoku) | 2018

Shoplifters

Se existe um diretor em atividade que definitivamente não precisa provar mais nada para ninguém, este alguém é o cineasta japonês Hirokazu Koreeda. Ainda assim, ele continua reafirmando-se como um dos melhores autores do mundo, e neste emocionante drama Assunto de Família (Shoplifters/Manbiki kazoku, JAP, 2018), seu cinema autoral brilha mais uma vez, ao contar a história de uma família criminosa diferente de tudo o que você já viu. Exibida no Festival de Cannes deste ano, a produção já habita o panteão das melhores obras deste impecável cineasta e seu cinema extremamente humanista, ao lado de Ninguém Pode Saber (Nobody Knows, 2004), Pais e Filhos (Like Father, Like Son, 2013) e O Que Eu Mais Desejo (Kiseki, 2011).

Assunto de Família conta a história de uma família capitaneada por Osamu (Lily Franky, do citado Pais e Filhos) e sua esposa Nobuyo (Sakura Andô), que não podem nem sequer se dar mais ao luxo de fazer sexo. Na meia-idade e fazendo bicos onde podem, o casal Shibata vive apertado em um muquifo nos arredores de Tóquio, junto de seu filho pré-adolescente, Shota (Jyo Kairi, da série Erased, 2017), da irmã mais velha de Nobuyo, Aki (Matsuoka Mayu), e da frágil avó Hatsue (Kirin Kiki, de Depois da Tempestade, e recém-falecida, infelizmente, no dia 15 de setembro deste ano), cuja pensão mensal é a única coisa impedindo que a família vá de vez para o buraco. O pequenino apartamento mal dá conta de tanta tranqueira espalhada dentro dele; montes de caixas e brinquedos velhos, quinquilharias, eletrodomésticos quebrados, etc, formam um quadro de uma família que prefere viver na bagunça do que lembrar de tudo que perderam no caminho. Mesmo que Osamu e Nobuyo tivessem tempo para fazer um “canguru perneta”, não haveria espaço para isso.

Mas eles amam um ao outro, não há dúvidas disso. Osamu costuma dizer que a família está conectada através de seus corações, e em seguida enterra tal pensamento sob a crescente montanha de lixo que sua família acumula no apartamento. Ele pode até estar em um estado de negação, mas ele não está errado. Na verdade, a família Shibata está conectada de diferentes maneiras: Amor, dinheiro, solidão, cicatrizes, dinheiro (sim, dinheiro merece ser mencionado duas vezes), e também (e é aí que a coisa pega), diversos trambiques. Explico: Osamu e Shota se divertem roubando coisas juntos.

Para quem lê tal sinopse, fica difícil acreditar que Assunto de Família está entre os melhores dramas do cinema delicado e profundamente tocante do diretor. Depois de se arriscar pela primeira vez num novo gênero com o mediano suspense O Terceiro Assassinato, lançado no ano passado, Koreeda retorna ao seu cinema humanista que o estabeleceu como um dos mais potentes cineastas dos últimos 25 anos. Ainda que muito da primeira hora do filme siga na vibe mais leve de seu Nossa Irmã Mais Nova (Our Little Sister, 2015), e o drama de sua metade final seja forte o suficiente para relembrar o espectador do inesquecível final de seu Pais e Filhos, é preciso retornar ao ainda estarrecedor realismo social do talvez ainda melhor trabalho do diretor, Ninguém Pode Saber, para encontrar outro filme de Koreeda que atinja tão explicitamente o coração do público quanto este aqui.

Quando o público é apresentado à Osamu e Shota durante um de seus pequenos crimes, não se tem a ideia do quão profundo o filme se torna quando a dupla encontra uma garota de cinco anos de idade chamada Juri (Sasaki Miyu), que foi abandonada perto do apartamento deles. Juri não é lá a garota mais falante do mundo, mas as cicatrizes espalhadas em seu corpo falam alto ao coração dos dois e também do espectador. Sensibilizado, Osamu leva a garotinha para casa, e após o jantar, Nobuyo sugere que a menina fique um pouco mais. Afinal, não é sequestro se ninguém pedir resgate, certo? E além do mais, há uma certa lógica emocional na ideia de que coisas (e pessoas), deveriam pertencer a quem os amar mais.

E os Shibatas realmente amam Juri. É claro que o fato dela própria ser uma tremenda ladra mirim, só ajuda na identificação dela com sua nova família. Os comerciantes nunca suspeitam dela, e quando alguém a pega no ato, a punição da garota acaba sendo apenas ganhar uns doces grátis. Entretanto, Juri funciona como o catalisador da história, à medida em que o roteiro generoso e paciente de Koreeda a utiliza para inspirar alguma reflexão no resto de sua nova família.

Todos os indivíduos desta inusitada família estão lidando com a maneira com que são vistos pela sociedade. Aki por exemplo, arrumou um esquema trabalhando como um tipo de stripper que se exibe para homens solitários que se escondem atrás de espelhos; Nobuyo é observada por várias pessoas diferentes em seu péssimo emprego, e nenhum destes olhares significam boa coisa. A avó, contudo, continuamente procura entender seu lugar em tudo isso, o que se revela mais complicado do que parece, uma vez que olhamos mais atentamente para aquela “pensão” que ela recebe.

A dinâmica da relação entre Osamu e Shota é outro grande motor do filme. Por que o garoto não o chama de pai? Por que Osamu não o deixa frequentar a escola pública? Cada um destes mistérios – e muitos outros – são amarrados de maneira tão sutil, que é difícil acreditar o quão evidentes eles na realidade eram. Assunto de Família transita de uma simples história de vida, para algo completamente novo. Algo doloroso, verdadeiro e extraordinário, dentro de sua própria estrutura fraturada.

Um mestre na arte de costurar conflito e armistício em suas narrativas, Koreeda consegue a façanha de virar este drama do avesso, sem nunca trair sua verdade mais ressonante. Se Assunto de Família gasta 90 minutos permitindo ao espectador que mergulhe fundo nas esperanças e preocupações diárias de seus personagens, os 30 minutos finais entrelaçam estas duas vertentes e em seguida as despedaça, sugando a humanidade do clã Shibata até a última gota. Fissuras profundas de emoções dormentes subitamente vêm à tona, e confrontam os valores e a própria existência da família de protagonistas.

Este turbilhão de emoções converge em um brilhante monólogo que Nabuyo entrega para a câmera. É um momento demolidor, dentro de uma série de momentos demolidores, e uma vez que as lágrimas do público se secam, é que o mesmo pode finalmente apreciar a direção primorosa de Koreeda, e a maneira delicada com que ele guia seu elenco através dos momentos mais estraçalhadores, permitindo à seus atores o espaço necessário para explorar a essência de seus personagens. E é maravilhoso observar o elenco encontrando seus personagens na tela, se acostumando com eles. Todos eles têm uma alma, e nós podemos enxergá-las completamente nuas.

Assunto de Família talvez não tenha a ambição vanguardista de um A Luz da Ilusão (Maborosi, 1995), por exemplo, ou a imaginação do monumental Depois da Vida (After Life, 1998), dois outros expoentes do cinema de Koreeda. Mas o que falta em novidade sobra em humanidade. Pura e crua. De natureza resoluta e nunca procurando deixar alguma lição de moral, Assunto de Família é uma produção devastadora, sobre pessoas abandonadas e as coisas belas que são perdidas e encontradas entre eles. Trata-se de um filme que pede a seu público para refletir sobre o lugar ao qual pertencem e sobre o que pertence à eles. Você não pode escolher sua própria família, mas família ainda é uma escolha a qual você tem que fazer repetidamente, todo santo dia.

Assunto de Família será exibido na Mostra Internacional de Cinema de SP 2018, e será lançado nos cinemas brasileiros no dia 03 de janeiro de 2019.

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