Crítica: Atlantique (Atlantics) | 2019

Alçada aos holofotes como a primeira diretora negra a competir pela Palma de Ouro no Festival de Cannes, a cineasta franco-senegalesa Mati Diop está ganhando ainda mais projeção internacional com o lançamento deste Atlantique (Atlantics, FRA/SEN/BEL, 2019), que foi adquirido pela Netflix e automaticamente alcançará um número muito maior de espectadores. Seu filme de estreia é um intenso romance notável por sua impecável concepção, além de uma original abordagem aos complexos desígnios do amor, da perda e das forças que ressurgem das cinzas da tragédia.
Sobrinha do falecido diretor Djibril Diop Mambéty (Touki Bouki: A Viagem da Hiena e A Pequena Vendedora de Sol), Diop atuou como atriz no filme da diretora francesa Claire Denis, 35 Doses de Rum (35 Shots Of Rhum, 2008), e ao longo dos anos dirigiu alguns curtas. Inspirado no documentário homônimo em curta-metragem dirigido pela própria Mati Diop em 2009, Atlantique se enquadra como um estudo dos contrastes sociais embalado como uma jornada onde a opressão é o ponto de partida, mas cuja busca é pela libertação.

Em Dakar, um enorme edifício domina o cenário desértico ao seu redor, se projetando quase que como um efeito-visual. O edifício, chamado de Muejiza Tower é um símbolo de modernidade, construído graças ao esforço e suor dos trabalhadores locais, como Souleiman (Ibrahima Traore), que não recebe seu salário há três meses. Seus chefes pouco se importam com a injustiça da situação e com o fardo imposto sobre as famílias dos trabalhadores, que dependem do dinheiro para sobreviver.

Ada (Mama Sane), considera Souleiman o amor de sua vida, ainda que ela esteja de casamento marcado com Omar (Babacar Sylla), por imposição de sua família. Diop utiliza-se de close-ups extremos para transmitir a afeição entre Ada e Suleiman. Seu foco íntimo captura os gestos repletos de ternura e os olhares apaixonados que nos fazem acreditar na devoção de um pelo outro. Há também uma generosidade de espírito no filme, que procura deixar claro que Omar não é um vilão, mas sim alguém que Ada simplesmente não ama e não suportaria estar casada.

Os encontros entre Ada e Omar são desprovidos de afeição, e são marcados apenas por estranheza, ressentimento e distância. O contraste não tem como ser mais evidente: Omar é um homem de negócios rico e viajado que enche Ada de presentes caros, incluindo uma cama de casal repleta de ornamentos que mais parece algo extraído de um álbum de fotos da família Kardashian. Se Ada se sentisse satisfeita em ser uma “material girl”, ela com certeza teria uma vida bastante confortável ao lado de Omar.

Mas então Ada descobre que Souleiman partiu sem dizer uma palavra sequer de despedida. Ele partiu em um barco ao lado de seus companheiros de trabalho à procura de uma vida melhor na Espanha. E pior: começa a circular a notícia de que o barco afundou e todos os homens teriam morrido afogados em alto-mar. O casamento de Ada com Omar segue seu curso, mesmo com toda a dor e tristeza que a noiva agora carrega, não só por seu amor perdido mas também por seu futuro ao lado de um homem a quem não ama. Contudo, uma sucessão de eventos inexplicáveis começam a sugerir que Souleiman pode ter de alguma forma retornado, e o jovem inspetor Issa (Amadou Mbow), começa a investigar o caso.
Mesmo levando sua história na direção do sobrenatural, Diop nunca perde o foco nas realidades políticas e sociais da vida no Senegal. Uma forma de vingança fantasmagórica pode ter sido lançada, mas seu objetivo é remediar as injustiças. Ada continua à mercê de uma sociedade que julga as ações de uma mulher e limita sua liberdade. Em uma sequência, a família de Omar exige um “teste de virgindade” para descobrir se ela ainda é digna de ser esposa de Omar. Ada não possui o luxo da fuga; gananciosos homens de negócios e policiais coniventes consideram a si mesmos acima da lei; Alguém precisa fazer alguma coisa.
Diop trabalha muito bem o ótimo elenco que tem em mãos, e Mama Sane se destaca criando uma Ada cheia de espírito e paixão. Há também uma firme resolução na personagem, que permite à ela nunca ser considerada uma vítima. Ibrahima Traore tem pouco tempo de cena, mas procura tornar a presença de Suleiman relevante junto aos sentimentos do público, e transmitir os elementos de angústia e frustração que habitam no personagem. Amid Mbow por sua vez, injeta decência ao seu inspetor de polícia, que acaba confrontado por forças que estão muito além de seu controle.
Diop é bem sucedida ao capturar a empoeirada bolha de vida e agitação das ruas de Dakar, e também na maneira com que evidencia o constante conflito entre o moderno e o tradicional dentro da sociedade senegalesa. Ela também encontra espaço para outros momentos contemplativos utilizando imagens que sublinham a força elemental do vento e do mar. Constantemente intrigante, Atlantique mescla com sucesso elementos narrativos tão díspares como uma história de amor, um conto sobre fantasmas e uma jornada de empoderamento (no REAL sentido da palavra), e os condensa em um drama distinto e envolvente.
Atlantique estreia no catálogo da Netflix no dia 29 de novembro.

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