Crítica: Cargo (2018)

É interessante observar como o ator britânico Martin Freeman (Ghost Stories, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), evoluiu de mirrado coadjuvante em produções como Simplesmente Amor (Love Actually, 2003) e Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead, 2004), à protagonista de verdadeiras powerhouses do cinemão americano, como a trilogia O Hobbit, além de participações de destaque em produções que integram o todo poderoso MCU, o universo cinematográfico da Marvel, como Capitão América: Guerra Civil e Pantera Negra, além de sua decisiva atuação na excelente primeira temporada da série Fargo, e também sua interpretação do Dr. Watson, fiel escudeiro do investigador Sherlock Holmes (Benedict Cumberbatch) na série Sherlock.

Outra produção que coloca Freeman como protagonista de uma trama voltada para um tema de apelo junto ao grande público, é este Cargo (Austrália, 2018), adaptação do curta-metragem homônimo de sucesso, dirigido pela dupla Ben Howling e Yolanda Ramke, que repetem aqui suas funções de diretor e roteirista da obra, respectivamente, e que fazem sua estreia na produção de longas. Cargo basicamente coloca Freeman contra uma pequena horda de zumbis em pleno outback australiano, mas o faz de maneira esperta e usando o coração. Além de apresentar algumas boas novas ideias sobre o batido gênero. Howling e Yolanda transformam uma pandemia zumbi em um ode ao amor parental, e um manifesto sobre a destruição do meio-ambiente e as desarmonias culturais da humanidade.

Apesar do roteiro de Ramke nem sempre evitar os elementos mais óbvios do gênero, o filme funciona como uma sombria distopia que remete ao opressivo A Estrada (The Road), drama apocalíptico dirigido pelo também australiano John Hillcoat em 2009. Cargo conta a história de Andy (Freeman), um marido e pai que avança rapidamente pelo deserto, sempre evitando os “virais”, como são conhecidos os mortos-vivos da vez que tomaram conta do cenário. Andy está tentando proteger sua pequena filha, Rosie, não só dos virais como também da própria epidemia, já que ele próprio é um dos infectados, e em 48 horas, Rosie corre o risco de tornar-se a próxima refeição do seu papai.

Numa decisão acertada, Howling e Ramke não desperdiçam a duração do filme explicando como a epidemia estourou. Como resultado, sobra espaço para o filme explorar outra personagem interessante, a jovem indígena Thoomi (a estreante Simone Landers), que fiel às suas raízes místicas, tenta ela própria salvar seu pai, que já se transformou em um zumbi. Guiados por seu líder espiritual (David Gulpilil, de Austrália e da série The Leftovers), o restante da comunidade de Thoomi utiliza-se de métodos cerimoniais para lidar com a doença, a qual eles consideram estar ligada à exploração dos recursos naturais do planeta.

Tomando seu tempo para unir Andy e Thoomi no mesmo fio narrativo, Cargo também introduz outros personagens, cada um lidando à sua maneira com o apocalipse; a ex-professora Etta (Kris McQuade), está isolada no que parece ser um hospital improvisado, enquanto o otimista Vic (Anthony Hayes, de War Machine, cuja crítica você também confere aqui no Portal do Andreoli), está planejando o futuro, ao lado da abalada Lorraine (Caren Pistorius, de A Luz Entre Oceanos), que ainda encontra-se em estado de choque. Alguns de maneira gentil, outros de um modo um tanto sinistro, ajudam a dar vida e profundidade à um cenário distópico que remete ao que a humanidade tem de melhor, e principalmente, ao que tem de mais sombrio escondido sob a camada da vida cotidiana.

Se Howling e Ramke acabam um tanto amarrados à mensagem ecológica do filme, seu uso do folclore da cultura indígena não só é proeminente como vital, já que dita o curso da narrativa e oferece paralelos entre o displicente tratamento por parte do país com relação à seus primeiros habitantes, e seu ficcional estado de infecção. A suntuosa fotografia do experiente Geoffrey Simpson (de Shine: Brilhante), captura com maestria o enferrujado verde do cenário australiano, além de oferecer excelentes tomadas aéreas que tornam simples a correlação entre a área a ser transcorrida pelo protagonista e a localização de seus velozes antagonistas virais.

Ainda assim, Cargo é indubitavelmente um filme de zumbi. O que quer dizer que o público pode esperar por muito sangue derramado em ataques violentos, alguns sustos e protagonistas desesperados lutando pela vida. Com seu personagem passando boa parte do filme sabendo seu infeliz destino, mas seguindo em frente com valentia pela vida de sua filha, Freeman mais uma vez brilha em uma interpretação significante que garante muito impacto emocional ao filme. A novata Simone Landers impressiona em sua estreia nas telonas, e a interação entre sua Thoomi e Andy também ganha um relevante caráter cultural.
Se a resiliência humana permanece como um estandarte nos filmes de zumbi, Cargo dá um passo além, já que aqui, reconhecer e redirecionar os divisivos erros do passado é mais importante do que meramente sobreviver.

Cargo estreia no catálogo da Netflix no próximo dia 18 de Maio.

Uma resposta

  1. Belíssimo filme, por vezes difícil de ser visto, mas vale a pena o esforço, pois aqui o que mais se sobressai é que há humanidade ainda diante do total caos – como aqui, nesta pegada zumbi, distinta de todas as outras pirotecnias já inventadas sobre a temática repetida à exaustão… Faz-nos repensar em cada segundo já perdido em nossa cotidianeidade tecnológica e que nos frustra a todo o momento. Talvez um merecido nove!

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