Crítica: Cherry: Inocência Perdida (Cherry) | 2021

É seguro deduzir que Nico Walker sabia que sua história de vida poderia render um bom filme nas mãos certas. Quando ele terminou de servir sua pena em Ashland, no Kentucky, ele aguardava pela publicação de sua semi-autobiografia que ele havia escrito na cadeia; a história de como ele foi parar lá. O livro se chamava Cherry, e o sucesso da publicação, que hoje pode ser chamada de best-seller, poderia render uma segunda chance para Walker, um ex-médico na Guerra do Iraque, viciado em drogas e posteriormente, assaltante de banco. Os diretores Joe e Anthony Russo pagaram a ele $1 milhão pelos direitos da história e a transformaram em seu primeiro esforço cinematográfico depois do arrasa-quarteirão Vingadores: Ultimato (2019).

No entanto, o que deveria ser um drama biográfico sobre a jornada de um homem que serviu seu país e terminou traído por ele, mais parece um filme de super-herói, gênero ao qual os Russo estão mais do que acostumados. A decisão de escalar o Homem-Aranha em pessoa no papel principal não ajuda a diminuir esta sensação, em grande parte porque o jovem Tom Holland irradia tanto daquela energia sincera do “amigo da vizinhança”, que ele fica limitado a usar a indiferença de seu personagem apenas como uma nova máscara. Ainda que, como sempre, o ator demonstre um admirável comprometimento ao papel.

O filme começa com seu anti-herói de frente para a câmera narrando em tempo-real um assalto a banco ocorrido em 2007, até que a ação nos transporta para alguns anos atrás, para nos mostrar como Walker se meteu nesta situação. Cherry: Inocência Perdida (Cherry, EUA, 142 min.), já começa a mostrar seus problemas logo aí, já que o filme não consegue nem sequer ir do PRÓLOGO para a PARTE I sem cair no profundo vale entre os dois. “Eu carrego muita tristeza em meu rosto, então eu tenho que agir como um louco, senão as pessoas pensarão que eu sou um covarde” diz Holland para o público enquanto ele caminha entre as captions do filme destacadas em grande letras vermelhas, como “Capitalista Um” ou “Banco de Merda” ou qualquer outra gag emulada do filme Clube da Luta. Aliás, fica nítida a tentativa dos Russo em imitar o estilo narrativo e estético do neo-clássico dirigido por David Fincher em 1999. É nítido também como os Russo passaram longe do mesmo resultado.

Depois que se tornou um jovem adulto, Holland costuma demonstrar em cena, na maioria de seus filmes, o entusiasmo de um cachorrinho que não para de abanar o rabo. Esta empolgação aqui até trabalha a favor do ator, quando seu personagem está tentando enfrentar as ansiedades autodestrutivas que o filme coloca em seu caminho. Porém, a energia de Holland no papel acaba sendo um enorme contraste com o tom apático do material. À favor dos Russo e da história real que eles decidiram contar aqui, talvez fosse impossível capturar a real essência destes infelizes personagens e colocá-las em cena. A bela Ciara Bravo (O Mínimo Para Viver) interpreta Emily, o interesse romântico do protagonista e que vira a vida dele de cabeça para baixo. A entrada da atriz dá um novo fôlego à seção intermediária da produção, mas não é suficiente para evitar que o filme caia de novo.

Mais uma razão para esta queda no ritmo do filme é que, apesar de Holland e Bravo formarem um belo casal, o roteiro não desenvolve a dinâmica entre os dois como deveria, além de reduzir os traumas da infância de Emily ao melodrama. Cherry também trabalha de forma melodramática a descida do casal protagonista ao mundo das drogas, a ponto de errar de maneira grosseira na abordagem dos momentos mais tristes da história. Chega a ser irritante a forma com que o filme trata a tragédia em comum do casal e seu convívio com as drogas. A verossimilhança passa bem longe da narrativa, à ponto do espectador questionar se tais situações poderiam acontecer na vida real.

Entre os anos de colégio e os dispendiosos anos de consumo de drogas que inspiraram o protagonista a começar a roubar bancos, Walker vai para a Guerra do Iraque, onde ganha o apelido que dá nome ao filme. A abordagem dos Russo ao capítulo no Iraque (meia hora dentro de 140 minutos de um verdadeiro teste de resistência para o espectador), parece perversamente determinada a não agregar nada à produção. Ainda que as sequências de combate permitam que os diretores coloquem sua experiência em ação de maneira que nunca puderam dentro dos filmes da Marvel, elas não são suficientes para salvar esta parte do filme.

Cherry nunca consegue realmente vender a sensação de dormência de Walker quando ele mergulha no vício, e as coisas só pioram quando sua educada sociopatia colide com a síndrome de estresse pós-traumático que ele traz da guerra. Tal colisão é tratada de forma tão histriônica que nem a referida sociopatia e trauma do protagonista são explorados como deveriam. “Eu tenho 23 anos,” ele diz para nós no início do filme, “e eu ainda não entendo o que é que as pessoas fazem.” Cherry não tem nenhuma resposta decente para seu protagonista; o filme dos Russo só consegue sufocá-lo com o peso esmagador do estilo em detrimento do conteúdo.

Há alguns fatores que ainda funcionam ao longo do caminho. Michael Gandolfini (filho do falecido James Gandolfini) é o melhor personagem do filme, no papel do amigo pateta do protagonista, mas Cherry: Inocência Perdida não torna possível para o espectador se importar por alguém que parece não dar a mínima para si mesmo. Seu personagem central é como uma bolinha num jogo de pinball, esbarrando em um desastre americano e depois em outro, e tentando encontrar qualquer beirada para se agarrar enquanto cai rumo ao fundo do poço. No final, seu único recurso disponível é sentar na beira da estrada e decidir que não quer mais estar neste filme. Se eu estivesse no lugar dele, também não iria querer.

Cherry será lançado na Apple TV+ no dia 12 de Março.

**O conteúdo e informação publicado é responsabilidade exclusiva do colunista e não expressa necessariamente a opinião deste site.

Imagens: Apple TV+

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