Crítica: Doce País (Sweet Country)

Poucas imagens são tão chocantes, perturbadoras ou revoltantes quanto a de um homem negro preso a correntes. E é justamente com uma imagem do tipo que o diretor Warwick Thornton (Sansão e Dalila, 2009), abre seu western ambientado no outback australiano (após um prólogo enigmático e violento que aos poucos vai sendo explicado no filme). Doce País (Sweet Country, Austrália, 2017), honra o gênero faroeste com sua linguagem iconográfica e seu tom taciturno, mas é ao mesmo tempo uma incendiária história sobre a escravidão, em que a poesia cinematográfica quase não consegue conter a fúria e o desgosto com relação a esta que é a mais vergonhosa das instituições humanas.

A inesquecível imagem inicial que mencionei, é de Sam Kelly (o ator aborígene Hamilton Morris), e a história de como ele acaba acorrentado pelo pescoço (em uma cena composta por um longo e implacável close-up), é também a história do filme, que se comporta como mais uma excelente produção oriunda da Austrália, país que vem se estabelecendo cada vez mais dentro do cinema mundial de qualidade. Sam e sua esposa Lizzie (Natassia Gorey-Furber, que assim como Morris também faz sua estreia aqui), vivem e trabalham em um pedaço de terra que pertence à Fred Smith (o sempre ótimo Sam Neill), um justo pastor que acredita que “todos são iguais aos olhos do Senhor”. Esta mentalidade o separa de seus vizinhos proprietários de terra, que tratam seus próprios trabalhadores aborígenes de maneira bem menos benigna, e que se referem à Sam e Lizzie como “gado negro”, por exemplo.

Quando mesmo assim, à pedido de Fred, o casal vai prestar um serviço para um destes vizinhos, o particularmente cruel Harry (Ewen Leslie, de A Filha, 2015), o homem aproveita a oportunidade para estuprar Lizzie, em uma sequência brilhantemente orquestrada pelo diretor Thornton, que mostra nos mais nítidos e aterrorizantes detalhes todo o plano de Harry para que Lizzie não tenha a mínima chance de conseguir socorro, enquanto é brutalmente e covardemente atacada, e em seguida coagida a se manter em silêncio sobre o ocorrido. Mais tarde, circunstâncias conspiram para que Harry volte à propriedade de Fred, e com o dono da casa ausente, Sam acaba atirando no estuprador de sua esposa em legítima defesa. O casal aborígene então sai em fuga, tendo a certeza de que há pouquíssimas chance das autoridades “pegarem leve” com um homem negro que atirou em um camarada branco. Para completar, uma milícia comandada pelo sargento Fletcher (Bryan Brown, da franquia F/X: Assassinato Sem Morte), sai no encalço do casal.

A produção segue uma narrativa de perseguição, familiar aos westerns clássicos. No entanto, o roteiro coeso e profundo à cargo da dupla David Tranter e Steven McGregor, dá originalidade e vivacidade ao filme, além de tratar com imenso cuidado o desenvolvimento dos personagens. Cada um deles, até os secundários, ganham particularidades que enriquecem a trama como um todo. O sargento Fletcher por exemplo, apesar de sua mentalidade irreversivelmente racista, está envolvido em um caso amoroso com uma moça da comunidade; um garoto aborígene, Philomac (interpretado pelos gêmeos Tremayne e Trevor Doolan), apesar de sofrer com o preconceito, não é tratado pela narrativa como um mártir, mas sim como um garoto atrevido e curioso como qualquer outro de sua idade, e seus atos desencadeiam boa parte dos eventos da segunda metade da narrativa; até o vilão do filme, Harry March, ganha um background que expõe sua traumática experiência na guerra, ainda que a narrativa nunca perdoe a selvageria do personagem.

No geral, a mensagem principal do filme de Thornton é a de que o mal e o bem habitam tanto a parcela negra quanto a parcela branca dos personagens de sua história. De fato, vários destes personagens se encaixam exatamente entre uma vertente e outra, o que garante veracidade à produção e intensifica o drama, já que mesmo aqueles que dizem e fazem coisas terríveis carregam consigo um vislumbre de humanidade, e uma ínfima esperança de redenção.

Além da direção, Thornton também se encarrega da fotografia do filme, com resultados nada menos que maravilhosos: Doce País é uma sinfonia de texturas palpáveis e de esmero nos detalhes. Desde a tomada que mostra em excruciantes detalhes uma arma sendo carregada por uma bala cujo estrago já é premeditado, até as expansivas imagens do estonteante outback australiano e seus céus carregados de cores inimagináveis, o filme carrega consigo um ar mítico. Numa outra sacada de Thornton, o filme é ausente de trilha-sonora, e o design de som da produção é nada menos que impecável, além de preciso e evocativo. Tal efeito é altamente imersivo, e rende maravilhas na apreciação do filme.

Como muitos outros exemplares deste gênero atemporal, Doce País é uma simples e envolvente história que toma seu tempo, numa elegia sobre as barbaridades ocorridas há muito tempo, mas que ainda ecoam nos tempos atuais. O primeiro filme de Thornton, o comovente Sansão e Dalila citado anteriormente, vencedor da Palma de Ouro em Cannes, anunciava a chegada de um cineasta talentoso propenso a dar voz para as histórias da marginalizada população aborígene da Austrália. No entanto, Doce País vai muito além disso, utilizando-se de uma linguagem cinematográfica respeitosamente tradicional e grandiosa, de natureza testamental, bela e também hostil, e ao mesmo tempo tão ampla e vasta quanto a capacidade humana para a crueldade.

Doce País ainda não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país diretamente através de serviços de streaming e VOD.

Uma resposta

  1. Assiti este filme em circuitos hype/cult/undergound de cinema (Galeria 33) aqui em joinville!!Só não sabia que ele ainda não foi lançado nos cinemas brasileiros. Os indios/mestços australianos (aborígenes)são ainda muito discriminados. O filme retratava uma epoca em que a abolição da escravatura só tinha terminado na teoria, não na pratica,dificil,não??!?? – marcio “osbourne” silva de almeida/jlle-sc

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