Crítica: Dreamland (2019)

Você já ouviu falar no nome Bruce McDonald? Provavelmente não. McDonald porém já é um veterano por trás das câmeras, e começou a dirigir ainda na década de oitenta, lançando alguns pequenos filmes e dirigindo episódios para diversas séries de TV. McDonald seguiu neste nicho até que finalmente em 2007, ele dirigiu o inusitado drama Os Fragmentos de Tracey, protagonizado por Ellen Page. Mas foi no ano seguinte que McDonald encontrou sua voz como diretor, dirigindo a inventiva comédia de horror Pontypool, baseado no best-seller de Tony Burgess (escritor e roteirista também deste Dreamland), e que ao longo dos anos ganhou um status de cult. Ele ainda dirigiu em 2015 o horror Mal Intencionados (Hellions), que também é uma interessante incursão do gênero.

Depois de se aventurar mais um pouco pela televisão, McDonald retorna com este seu novo trabalho, Dreamland (CAN/LUX/BEL, 2019), exibido no Fantasia Festival do ano passado, e que traz de volta o diretor canadense em mais uma parceria com o ator Stephen McHattie (o grande público talvez lembre dele em Watchmen, mas ele esteve muito bem no recente thriller Come to Daddy, cuja crítica também está disponível aqui no Portal do Andreoli). Os dois trabalharam juntos em Pontypool, e aqui mais uma vez a dupla surpreende apresentando uma história de um assassino de aluguel que honra o gênero e solidifica ainda mais o nome de McDonald como um dos mais interessantes do horror e do suspense da atualidade.

No filme, McHattie interpreta um trompetista de jazz sem nome e também um assassino profissional chamado Johnny, cujas vidas convergem de maneiras fascinantes e surpreendentes, e que envolvem Johnny tentando resgatar jovens vítimas do tráfico sexual em meio à uma grandiosa e insana cerimônia de casamento, na qual o trompetista está escalado para tocar. Ao mesmo tempo imprevisível e adorável, Dreamland é uma empolgante mini-odisséia que nunca perde o senso de humor, e que culmina em uma assombrante versão da maravilhosa canção “I Saved the World Today,” da banda Eurythmics, a qual McHattie reproduz com incrível ternura em um momento do filme e que confesso, encheu meus olhos de lágrimas.

É apropriado, então, que o filme se desenrole quase que musicalmente, como uma espécie de balada do grande artista do jazz Chet Baker. Porém, ao invés de letras de amor, o filme canta sobre um inusitado assassino profissional e a figura do trompetista que o espelha. McDonald move sua história adiante em um passo que mantém suas notas afinadas e que parece ser bastante seletivo quando a questão é defender seu ponto de vista, ou apenas soar como uma obra bacana e cool. O filme dá uma viajada na maionese, é claro, principalmente nas performances de seu elenco de apoio, todos ótimos, e que incluem nomes como Henry Rollins, Juliette Lewis e o esquisitão Tómas Lemarquis (Expresso do Amanhã, Blade Runner 2049), que interpreta um vampiro. Sim, um vampiro.

Mas apesar de seu título e sua concepção completamente “fora da caixinha”, o filme é muito mais uma produção sobre a lógica dos sonhos do que apenas um delírio contínuo, onde uma narrativa pé-no-chão se desdobra com detalhes aos quais não cabem questionamentos. Um dos aspectos mais sedutores da produção é a sua visão completamente coesa, que se mostra sincera para todas as partes envolvidas e que se fortalece no literal e no metafórico, pintando um mundo bizarro e original no processo. Deu para entender? Espero que sim, Dreamland não é um filme fácil de se descrever.

O roteiro à cargo de Tony Burgess em parceria com Patrick Whistler guarda semelhanças ao roteiro do excelente drama Você Nunca Esteve Realmente Aqui (You Were Never Really Here), protagonizado por Joaquin Phoenix em 2018. McDonald, entretanto, nunca é sentimental demais com sua obra, e prefere contrastar a natureza dark da história de seu melancólico herói com pinceladas de humor, coincidências e absurdos em geral. Todas as vezes que o filme coloca McHattie de frente para si mesmo na história, o resultado é excepcional, e Dreamland é o tipo de filme que pode se tornar cada vez mais soturno graças ao seu perturbador conteúdo, que ao mesmo tempo é bastante engraçado.

Dreamland também consiste em um tremendo veículo para McHattie, cuja performance é tão triste quanto a de Joaquin Phoenix no citado Você Nunca Esteve Realmente Aqui. McHattie (nos dois papéis) insere naturalidade ao filme, transmitindo sabedoria e alma nos momentos mais reflexivos da produção. Tal atuação, aliada ao apuro técnico e visual de McDonald (sempre um plus em sua filmografia), transformam o filme em uma empolgante abordagem ao cinema de crime, onde a violência não é uma confiança cínica, mas sim uma expressão poética de maior escopo narrativo. Dreamland não é um filme para todos, mas é cinema em sua mais pura tradução.

Dreamland não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país diretamente através de sistemas de streaming e VOD.

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