Crítica: Duas Rainhas (Mary Queen of Scots) | 2018

duas rainhas

Antes de entrar nos detalhes deste Duas Rainhas (Mary Queen of Scots, UK, 2018), uma breve aulinha de história: caso você não conheça a história britânica, houveram duas rainhas de nome Mary na vida da Rainha Elizabeth I: sua meia-irmã mais velha, Mary Tudor (1516-1558) e sua prima, Mary Stuart, a “Mary Rainhas dos Escoceses” do título original. Mary era ligada aos Tudors através de sua avó, Margaret, que era a irmã mais velha do Rei Henrique VIII. Margaret se casou com o Rei James VI da Escócia, se tornou viúva em 1503, e se casou novamente com Archibald Douglas, o sexto conde de Angus. Ela ainda se casaria uma terceira vez (com Henry Stewart, o primeiro lorde de Methven), mas durante seu segundo casamento, ela se tornaria a avó do lorde Darnley, o segundo marido da personagem-título. Com James IV, Margaret teve apenas um filho que sobreviveu, James V, o pai de Mary. Mary se tornou rainha quando ela tinha apenas seis dias de idade. Elizabeth, sua prima, era cerca de nove anos mais velha.

Os Regentes (incluindo a mãe de Mary), governaria por Mary enquanto ela fosse educada e alfabetizada. Anos mais tarde, a jovem Mary se casou na França, mas seu primeiro casamento, com o Delfim da França, seria curto. Seu marido se tornou o Rei Francis II em 1559, e em dezembro de 1960, ele foi morto. Mary, agora viúva, retornou à Escócia em agosto de 1561. Em 1565, ela se casou com Henry Stuart e em 1566, teria um filho, James. Henry Stuart seria assassinado em 1567, deixando Mary viúva mais uma vez. Apenas um mês depois, ela se casaria de novo, agora com James Hepburn, 4th conde de Bothwell. No mesmo ano, Mary abdicaria do trono e seu filho se tornaria rei. Ela então procurou santuário na Inglaterra, e após cerca de 18 anos, ela viria a ser considerada culpada de tramar o assassinato da Rainha Elizabeth I, sua própria prima, e acabou decapitada em 1587. A Rainha Elizabeth foi a única criança sobrevivente da segunda esposa de Henrique VIII, Ana Bolena (Anne Boleyn), por quem ele rompeu relações com a Igreja Católica, para se divorciar de sua primeira esposa, Catherine de Aragon. Ana foi decapitada após ser acusada e condenada por adultério, feitiçaria e traição. Este núcleo específico da história da realeza britânica também ganhou uma versão cinematográfica bastante interessante com o filme A Outra (The Other Boleyn Girl), filme dirigido por Justin Chadwick em 2008 e protagonizado por Scarlett Johansson e Natalie Portman.

Duas Rainhas começa do fim: A ainda bela Mary (Saoirse Ronan, de Lady Bird: Hora de Voar), é vista pelo espectador pela primeira vez, rezando fervorosamente, antes de ser escoltada até a câmara onde perderá sua cabeça. Por baixo de suas sombrias vestimentas pretas, ela está usando vermelho, simbolizando sua condição de mártir. Sua morte não foi nada rápida, uma vez que seu executor precisou de três golpes de machado para conseguir separar a cabeça do corpo da mulher.

Conforme o resumo histórico acima, o notório e trágico conto da Rainha da Escócia é na verdade a história de duas rainhas, Mary e Elizabeth, primas de diferentes religiões. Duas Rainhas é um filme imperfeito, que tenta mas nem sempre consegue transmitir dramaticamente o peso de sua história. Contudo, a produção traz performances avassaladoras de dois grandes nomes femininos do cinema atual, Saoirse Ronan e Margot Robbie (de Eu, Tonya, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli). A dupla brilha nos papéis das “irmãs” e rainhas – e também inimigas – porque segundo os dizeres da época, “uma rainha não tem irmãs, apenas um país”. Em suas notas introdutórias, a diretora estreante Josie Rourke, conhecido nome da cena teatral inglesa, assinala que a Era da Rainha Elizabeth foi um tempo em que as pessoas pensavam que o conceito de mulheres líderes era “contra a natureza, contra Deus”. Não apenas para Mary, mas também para Elizabeth, era incrivelmente difícil encontrar a integridade e o coração de seus governados.

O filme de Rourke segue alguns dos conceitos da produção de 1971 de mesmo nome (no original), já que aqui o filme dirigido por Charles Jarrott ganhou o título de Mary Stuart, Rainha da Escócia. Mas ao mesmo tempo, a produção procura se atualizar para os dias atuais, introduzindo sensibilidade, inclusividade e uma parcela (desnecessária) de feminismo. Duas Rainhas tem faces negras e asiáticas em seu elenco, além de tocar no tema do estupro marital. Mas tal “atualização” na concepção da história não muda a visão mais tradicional do conto como um todo. Entretanto, Rourke se aproveita da liberdade de poder trabalhar em campos amplos, longe do espaço restrito do palco teatral. Longas tomadas do belíssimo cenário escocês servem como artifício de transição entre as batalhas, tanto físicas quanto políticas.

O roteiro de Beau Willimon (da série House of Cards), baseado no livro “Queen of Scots: The True Life of Mary Stuart“, do escritor britânico John Guy, viaja ao dia em que Mary retorna à Escócia. Uma vez em segurança no castelo, Mary se encontra em uma situação nada agradável: Seu meio-irmão, James Stewart, conde de Moray (James McArdle), o filho bastardo do pai de Mary, e que era quase uma década mais velho que ela, se encontrava numa situação confortável governando no lugar da meia-irmã. Apesar de sua tolerância aos desígnios predominantemente protestantes de sua côrte, a católica Mary é confrontada por John Knox (David Tennant, das séries Doctor Who e Jessica Jones), o fundador da Igreja Presbiteriana da Escócia.

O tema “casamento” também causa preocupação, não apenas em Mary e sua côrte, mas também em sua prima, a Rainha Elizabeth (Robbie). Elizabeth planeja tomar o controle das mãos de Mary usando seu interesse romântico (o termo usado na corte era “favorito”), o viúvo recente Robert Dudley (Joe Alwyn, do recente A Favorita), e o oferece a Mary como um adequado segundo marido. Mas a caprichosa Mary se apaixona por seu primo, Lorde Darnley (Jack Lowden, de Dunkirk e do thriller Calibre, da Netflix). Darnley é um sedutor nato, tanto de homens quanto mulheres, e no roteiro de Willimon ele vai para a cama até com o secretário particular de Mary, o italiano David Rizzio (Ismael Cruz Cordova). É a determinação de Mary em produzir um herdeiro que resulta primeiro em sua sedução forçada e em seguida o que poderia ser interpretado como estupro marital, em que Darnley se torna o agressor. Darnley deseja ser tanto marido quanto rei do castelo, mas a questão é que ele é cabeça fraca demais para isso. Ele permite que seu cunhado, James Stewart e seus coligados, o convençam de que Rizzio deve ser assassinado, e na presença de sua esposa. Mary à princípio defende Rizzio durante o atentado, mas ele acaba esfaqueado até à morte, com Mary como testemunha.

A diretora Rourke captura com correto fatalismo a vulnerabilidade desta rainha, uma mulher entre guerreiros brutais. Ela pode até liderá-los na batalha, mas não é páreo para eles tendo como escudo apenas seu frágil direito de nascença. Com a morte de Rizzo e o envolvimento de Darnley na questão, o fim da permanência de Mary na Escócia se torna inevitável. Seu próximo marido, Bothwell, a sequestra e a estupra como forma de forçá-la a se casar. O roteiro de Willimon abstrai completamente o romance dos casamentos desta jovem, bela e trágica rainha, enquanto que Rourke não poupa o espectador de presenciar as violações físicas perpetradas contra ela. E uma vez que seus casamentos não podem blindá-la dos radicais religiosos, Knox parte para o ataque. Para ele, Mary não é uma rainha; é uma vadia. Algumas coisas nunca mudam.

No citado filme homônimo de 1971, a eterna Vanessa Redgrave interpretava a personagem-título, onde batia de frente com a Elizabeth I interpretada por Glenda Jackson. O roteiro (à cargo de John Hale), colocava as duas frente à frente duas vezes na trama, além de sugerir uma ligação homossexual entre David Riccio (Ian Holm), e o segundo marido de Mary Stuart, Henry (Timothy Dalton). Com o roteiro de Willimon e sob a direção de Rourke, a nova versão da história é mais enfática no que diz respeito à esta conexão homossexual, mas nunca explícita. Willimon também não resiste à reunião destas duas rainhas, algo que não aconteceu na vida real.

A melhor cena do filme, entretanto, acontece justamente no suposto encontro entre as duas. Elizabeth, agora já com o rosto coberto de marcas causadas por infecções na pele e com o couro cabeludo quase careca completamente exposto, encara a ainda desafiadora Mary, cujos longos cabelos ruivos se fundem em uma simples trança sobre suas costas. E Elizabeth declara para Mary que, em sua beleza, seus casamentos e maternidade “você me superou em tudo”, mas “seus dons serão também a sua queda.” Mary deposita ingenuamente sua fé em Elizabeth, que jura que ela estará segura na Inglaterra, mas nós sabemos que isso não é verdade. O roteiro segue na direção deste confronto entre as duas, ao invés de se apoiar no horror psicológico do que não é visto nem conhecido historicamente.

Falando um pouco mais sobre Elizabeth, tão bem interpretada por Robbie na produção, em dado momento do filme, ela declara ser tão poderosa quanto qualquer homem que almeja o poder. Contudo, ela ainda é amaldiçoada pela necessidade da admiração masculina, ainda que considere os homens criaturas vis e cruéis. Visualmente entretanto, o público acompanha a monstruosa transformação de Elizabeth em uma caricatura de rainha, com sua face branca marcada por cicatrizes, sua exagerada peruca vermelha e seus dentes podres. Ela é quase uma versão realista da Rainha Vermelha interpretada por Helena Bonham Carter na versão de Alice no País das Maravilhas dirigida por Tim Burton, em 2010.

Para encerrar, só um pouco mais de história: quando da execução de Mary em 1587, aos 44 anos de idade, Elizabeth tinha 54 e seu favorito, Robert Dudley, havia se casado novamente, em 1578, desta vez com a sobrinha-neta de Ana Bolena, a viúva Lettice Knollys. Elizabeth, em desgraça, também nunca o perdoou.

Duas Rainhas estreia nos cinemas brasileiros no dia 14 de fevereiro de 2019.

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