Crítica: Especiais (Hors Normes/The Specials) | 2019

Um dos mais fortes e poderosos exemplares exibidos no Festival de Cannes do ano passado, o drama Especiais (Hors Normes/The Specials, FRA, 2019), marca o retorno dos dois grandes nomes da comédia social francesa moderna, Eric Toledano e Olivier Nakache (do espetacular Intocáveis, e dos ótimos Samba e Assim é a Vida). Foram três anos de intervalo entre Assim é a Vida e este Especiais, e o filme, que acabou tendo sua première em Cannes sem nenhum alarde, foi eleito pelo público e crítica como um dos melhores do festival.

Abrindo uma porta para o mundo dos adolescentes e jovens adultos que são autistas, Especiais é claramente um filme de natureza bastante pessoal, criado à partir da amizade real entre Toledano e Nakache com os objetos de sua narrativa: dois incansáveis cuidadores daqueles que foram rejeitados pelo sistema. Nós espectadores vivemos confortáveis em nossa ignorância e negação sobre o tema do autismo, mas Nakache e Toledano dirigem seu filme de forma que seu público sinta-se propelido a deixar este estado de torpor. Uma curiosidade bacana sobre o filme é que durante os créditos finais, somos avisados de que 5% dos lucros arrecadados pelo filme, serão doados para as instituições de cuidados aos autistas que são retratadas na produção. Mais uma razão para se possível, conferir Especiais no cinema.

Especiais é um tipo raro de filme, que se apoia tanto no coração quanto na dura realidade. É uma mistura potente que permite acesso a um tema difícil, mas que recebe o espectador com graça e humor. Toledano e Nakache têm agora a maturidade e o sucesso como cineastas para abordar este tipo de material de maneira leve, porém muito verdadeira. O filme bate forte, mas a edição ligeira, o alto nível de informação fornecido ao público e o preciso desenvolvimento dos personagens mantém a obra sempre bem equilibrada e cativante.

O sempre ótimo Vincent Cassel (Irreversível, Cisne Negro), entrega uma de suas melhores performances em anos no papel de Bruno, um homem que praticamente doou sua vida para a instituição que ele próprio fundou, e que cuida de crianças e adolescentes autistas. Reda Kateb (A Hora Mais Escura) é seu aliado, Malik, que administra um braço da companhia, responsável por treinar jovens carentes para serem futuros cuidadores trabalhando para a instituição.

Ambos são, claramente, reais. Bruno é baseado em Stephane Benhamou, a quem Toledano e Nakache conheceram há 25 anos atrás e que cuidou de um jovem autista da família do próprio Toledano. Malik é inspirado em Daoud Tatou, a quem os cineastas encontraram pela primeira vez quando fizeram um curta-metragem com o objetivo de levantar dinheiro para ajudar Stephane. Em 2015, Toledano e Nakache dirigiram um documentário de 26 minutos sobre a peculiar dupla – um deles Judeu, o outro Muçulmano – chamado We Should Make A Film About It (traduzido livremente como “Nós Deveríamos Fazer um Filme Sobre Isso”). Bem, agora eles fizeram.

Grande parte do filme se preocupa em retratar um incidente que deu origem ao curta de 2015, e também a investigação oficial que aconteceu ao longo de 2017 e que ameaçou fechar as portas da instituição não-licenciada de Stephane. Mas outra boa porção da narrativa da produção corre mais solta, e se preocupa em retratar a natureza mais cotidiana do trabalho de Stephane e Malik.

O resultado é digno e respeitoso, além de dramaticamente satisfatório. O elenco é diverso, e o compromisso com a verdade reflete-se em cada frame da produção. Um jovem autista, Benjamin, interpreta uma versão de si mesmo com grande sucesso e humor. O jovem Marco Locatelli, que interpreta o profundamente perturbado Valentin, tem ele próprio um irmão autista. E o personagem de Kateb é duro e inflexível com os potenciais jovens cuidadores que vêm das comunidades carentes, sobre a importância de se chegar no horário, da correta utilização da gramática e da necessidade de ser sensível.

O estilo de filmagem é vívido, seja com a câmera na mão ou estática, muitas vezes em escritórios e consultórios lotados, vans e quartos de hospital, sempre em movimento. Em alguns momentos, Toledano e Nakache operam poderosas tentativas de transmitir visualmente as sensações que uma pessoa autista possa vivenciar. São passagens inquietantes, como não poderiam deixar de ser, mas que são entregues de maneira madura e nada apelativa. Há também muita informação sendo fornecida ao espectador, o tempo todo. Como mencionei, Toledano e Nakache buscam dar uma sacudida em seu público, de forma a acordá-lo para uma outra realidade, mas nunca condenando ou procurando passar algum tipo de sermão.

É claro que não faltam algumas gags recorrentes, típicas do cinema dos diretores: Os fracassados encontros românticos de Bruno, por exemplo, ou a utilização da célebre expressão francesa C’est La Vie, que aqui ganha novas variantes, como “on s’adapte” (“Nós nos adaptamos”) e “on n’est pas loin” (algo como “Não estamos longe”), sempre utilizadas com inteligência e doçura pelo roteiro. Especiais, assim como fez em Cannes, procura mostrar sempre de maneira contundente o que uma ou duas pessoas podem fazer para transformar vidas. É um filme de poder reabilitador, onde todos os envolvidos são especiais, sejam os que estão à frente ou atrás das câmeras, ou aqueles cujas histórias inspiraram Nakache e Toledano a criar um dos mais belos filmes do cinema recente.

Especiais ainda não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, mas deve ser distribuído em algum momento ainda neste primeiro semestre de 2020.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Compartilhe esta notícia

Mais postagens