Crítica: Fahrenheit 451 (2018)

Falar de refilmagens é sempre complicado. Já há algum tempo, basta um remake ser anunciado para já ser motivo de desconfiança e até um certo preconceito. Tal preconceito não é de todo infundado, afinal, a quantidade de refilmagens que denigrem a imagem do filme original supera de longe os remakes que de fato tem algo relevante a acrescentar ao material no qual é baseado. Quando o original em questão é um clássico então, o negócio fica ainda mais tenso, como é o caso deste Fahrenheit 451 (EUA, 2018), nova produção da HBO baseada no clássico livro do grande Ray Bradbury lançado em 1953, que já havia ganhado uma sólida versão dirigida pelo francês François Truffaut em 1966.

Mesmo contando com dois grandes nomes como protagonistas do elenco, o excelente Michael Shannon (Wolves, Animais Noturnos, cujas críticas encontram-se disponíveis aqui no Portal do Andreoli), um dos melhores atores da atualidade; e o ascendente Michael B. Jordan (Creed: Nascido Para Lutar e Pantera Negra), esta versão escrita e dirigida por Ramin Bahrani (do ótimo drama 99 Casas, também protagonizado por Shannon), perde a chance de incrementar a visionária distopia na qual é baseada, e apenas recicla de maneira tímida e sem surpresas o clássico conto de Bradbury.

“Isto é tudo que vocês precisam saber. Qualquer outra coisa transformará vocês em doentes. Loucos.” É o que diz Beatty (Shannon), um capitão de uma “brigada de incêndio” à um grupo de crianças em uma escola, enquanto mostra a elas uma versão “emojificada” da Bíblia Sagrada. Bradbury foi visionário com sua história, porém ele não conseguiu prever a era dos emojis. Em seu livro de 1953, o autor retrata um mundo em que “bombeiros” incineram livros como forma de manter a população dócil e controlável, incapazes de formular seus próprios pensamentos. Nesta versão de Bahrani, as ações dos bombeiros são divulgadas através das mídias sociais, e tanto Beatty quanto seu principal tenente, Guy Montag (Jordan), são vistos como heróis onipresentes pela população. Montag, entretanto, após conhecer a jovem e impetuosa Clarisse (a bela Sofia Boutella, de Atômica, cuja crítica você também confere aqui no Portal do Andreoli), começa a questionar suas próprias ações, e se rebela contra a sociedade que o cerca.

Como sempre, Shannon mastiga o cenário à sua volta, em mais uma performance destruidora. Já o carismático Jordan é de certa forma um pouco desperdiçado, e a evolução de seu personagem – de incendiário à preservador da literatura – acontece de maneira apressada demais para ser suficientemente crível. Além do mais, o conto de Bradbury funciona melhor como exercício de polêmica do que como uma jornada propriamente construtiva. Uma destas polêmicas da história clássica é o desdém pela televisão, que de acordo com o livro enfraquece o intelecto e a criatividade de quem assiste (em tempos de Rede Globo é difícil não acreditar nisso). Chega a ser irônico, portanto, que justamente a televisão seja o canal pelo qual esta reimaginação do livro chega até o público.

O filme tenta deslumbrar o público colocando atualizações na história para encaixar sua narrativa aos dias atuais, mas o efeito destas atualizações não é tão eficiente assim, e por vezes soa bastante forçado. Por exemplo, aqueles que colecionam e/ou escondem livros são punidos tendo sua identidade oficialmente apagada, e em seguida são transformados em cidadãos ilegais. Tais punições são transmitidas de maneira clichê através de telões e mídias sociais para que todos possam ver e aplaudir, enquanto proferem blasfêmias como “É hora de queimar pela América mais uma vez!”

É até adequado que uma frase tão retrógrada como esta seja proferida em uma sociedade que queima a literatura, mas fica evidente a agressividade com que o filme busca um paralelo contemporâneo nas costas do atual presidente norte-americano Donald Trump e seu “Make America Great Again” (“Torne a América Grandiosa Novamente”), o que não só é descaradamente partidário como completamente desnecessário. O mesmo vale para o escancarado ataque às mídias sociais, em tempos onde Mark Zuckerberg e seu Facebook tornaram-se vilões de uma nação após vazamento de informações de seus usuários. O filme não precisava ser tão óbvio.

Ultimamente, praticamente todas as facetas da arte se tornaram um objeto de ataque e protesto contra às forças que governam nossas vidas. É um impulso compreensível, mas que ao mesmo tempo elimina potenciais insights narrativos, e fabrica histórias incoerentes que são movidas mais pela insatisfação do que pela razão.

Em um dado momento do filme, o espectador é informado de que os livros foram banidos porque eles retratavam o racismo e o sexismo, etc. Não deixa de ser um pensamento provocativo, mas ao mesmo tempo, não está em concordância com a insensibilidade dos bombeiros incendiários de sua trama. Este Fahrenheit 451 frequentemente se assemelha à uma versão emojificada de seu material fonte, eliminando todos os elementos mais complexos de sua trama, assim como os seus bombeiros queimadores de livros. Entre assistir à esta versão e ler um bom livro, fique com a segunda opção. Pelo menos enquanto é tempo.

Fahrenheit 451 estreia no canal pago HBO amanhã, 19 de Maio.

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