Crítica: Nancy (2018)

Exibido no Festival de Sundance deste ano, o suspense dramático Nancy (EUA, 2018), tem em sua protagonista seu maior trunfo. A bela Andrea Riseborough (do drama vencedor do Oscar Birdman, da sci-fi aventuresca Oblivion e do recente e melhor episódio da quarta temporada da série Black Mirror, Alligator), faz valer como nunca seu prodigioso talento, entregando uma performance colossal, em uma trama muito bem construída e explorada pela roteirista e diretora estreante Christina Choe.

A primeira coisa que aprendemos sobre a protagonista que dá nome ao filme é que ela é uma mentirosa. Contudo, a escrita afiada de Choe e a performance nervosa de Riseborough utiliza o fato apenas como um ponto de partida. As mentiras de Nancy à princípio soam como sua tentativa para tentar adentrar em um mundo que a iludiu e descartou; uma ninguém de 35 anos que enfileira empregos temporários, que tenta deslanchar em uma improvável carreira como escritora, e que ainda vive na arruinada casa de sua mãe, Betty (papel da excelente Ann Dowd, das séries The Leftovers e The Handmaid’s Tale). Nancy também é obcecada pela internet e por seu celular, e passa horas com o nariz enfiado nas telas, mesmo com as objeções de sua mãe. A relação entre as duas é um barril de pólvora.

Quando encontramos Nancy pela primeira vez, ela está compenetrada em sua mais recente empreitada: um blog que retrata a recuperação de uma mulher que perdeu um filho, e usa a plataforma para alcançar outros pais que passaram pela mesma tragédia. A questão é que Nancy nunca teve um bebê que tenha morrido (ou teve?) e o nome que ela usa no site não é o dela. Quando ela marca um encontro com um de seus leitores, Jeb (um excepcional John Leguizamo, de Spawn: O Soldado do Inferno), ela chega ao local usando uma barriga falsa, dizendo ao seu amigo da internet que ela está grávida novamente e esperançosa com relação ao futuro. E quando ele jura solenemente que não é um destes “creeps da internet”, tanto ela quanto o espectador precisam lidar com a verdade: a de que ELA é a creep da internet.

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Ainda assim, a emoção que ela evoca através de seus falsos testemunhos afeta Jeb profundamente, e quando mais tarde na trama os dois começam uma discussão em um local tão banal quanto um supermercado, tal momento atinge um verdadeiro soco no estômago do espectador, e mantém Nancy cambaleando pelo restante do filme. Tal momento também coloca em evidência a real questão proposta pela produção: Como colocar um preço na verdade, quando as emoções obliteram toda honestidade?

Esta questão é o real cerne do que Choe quer abordar em seu Nancy; uma perigosa gangorra onde prevalece sempre a dúvida se Nancy faz o que faz apenas para apimentar sua vida entediante, ou se tais mentiras são na realidade tudo o que ela tem. À medida em que as mentiras ficam cada vez maiores, cresce também o impacto emocional do filme, e a rica performance de Riseborough. Mais à frente na produção, Nancy aparece na vida de um casal que teve a filha sequestrada há cerca de trinta anos atrás. Nancy constata que fisicamente, ela se parece bastante com a imagem de uma projeção de como a menina estaria hoje, postada em um website pelo casal ainda devastado pelo desaparecimento da garota, interpretados pelos ótimos Steve Buscemi (Fargo, Cães de Aluguel) e J. Smith-Cameron (do drama Christine, cuja crítica você também confere aqui no Portal do Andreoli).

É o suficiente para Nancy colocar seu ocupado cérebro para funcionar (e para fazer a audiência questionar se existe sequer um limite para suas mentiras). Trata-se de uma eletrizante reviravolta, e a prova cabal da habilidade de Choe em mexer com as percepções do público em torno de uma personagem evidentemente mentirosa, mas que evoca um pedido de compreensão por parte do espectador. Ainda que a performance de Riseborough seja a principal atração aqui, o incisivo roteiro de Choe é outro ponto extraordinário da produção. A cineasta estreante capricha nos detalhes, seja em um sutil comentário por parte de Betty, ou em uma única rejeição de um crítico literário, e o status da carreira de Nancy se torna óbvio. E bastam apenas algumas fotografias para evidenciar a magnitude da perturbada patologia da protagonista, e para mostrar como ela atrai as pessoas para seus jogos doentios.

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Brilham também os coadjuvantes Smith-Cameron e Buscemi, em papéis trágicos e delicados. É interessante observar como a Ellen de Cameron se entrega quase de imediato à estranha, enquanto que o Leo de Buscemi tenta resistir até não conseguir mais, em uma sequência de partir o coração. Mas é mesmo Riseborough quem mantém o filme sempre no limite, sedimentando suas reviravoltas e transformando-as em algo assustador e por vezes, até estranhamente compreensíveis.

As histórias que Nancy conta podem até ser falsas, porém o sentimento por trás delas é muito real. O passado não pode ser mudado, mas sob a ótica da protagonista, o futuro pode ser moldado no que ela quiser.
Sim, Nancy é uma mentirosa. Porém, o truque aqui é que nós não podemos nos impedir de acreditar nela.

Nancy não tem previsão de estreia nos cinemas, e deve chegar ao país diretamente através de serviços de streaming e VOD.

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Uma resposta

  1. Gostei do filme, assisti há pouco e compartilho da percepção do Eduardo a respeito da protagonista. Apesar de tudo, me solidarizei com o drama pessoal de Nancy (Andrea Riseborough impecável, adoro tudo que ela faz) – ah, e o desfecho foi excelente, ao meu ver.

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