Crítica: Os Mortos não Morrem (The Dead Don’t Die) | 2019

The Dead Don't Die

Logo no início deste Os Mortos não Morrem (The Dead Don’t Die, EUA/SUE, 2019), produção que abriu o conceituado Festival de Cannes na edição deste ano, o policial Ronald “Ronnie” Peterson (Adam Driver, de Infiltrado na Klan, cuja crítica também está disponível aqui no Portal do Andreoli), em dado momento diz que “Toda essa situação vai acabar mal.” Quase uma hora e 45 minutos depois, Ronnie já terá proferido tal frase tantas vezes, que até seu chefe, o normalmente calmo Cliff Robertson (o grande Bill Murray, sendo Bill Murray), explode em frustração quando seu comandado repete as palavras uma última vez. Trata-se de um raro momento neste “filme de fim do mundo” dirigido pelo cult Jim Jarmusch (Ghost Dog, Amantes Eternos), que realmente captura a atenção do público. O que provavelmente não é bom, uma vez que grande parte de seu filme gira em torno de uma inesperada horda de zumbis caminhando pelo planeta. Contudo, o notório autor cinematográfico parece mais interessado em criar uma metáfora para o atual estado da política norte-americana, do que propriamente criar uma obra divertida sobre os mortos-vivos.

Ainda que exista uma multitude de narrativas fluindo através do elenco numeroso e bastante conhecido do filme de Jarmusch, o conflito realmente tem início com as terríveis consequências da mineração dos pólos norte e sul do planeta. Tal ação irresponsável fez o eixo do planeta se desequilibrar dramaticamente, e as consequências são sentidas até na sonolenta cidade de Centerville, onde o filme se passa. De repente, os relógios de Ronnie e Cliff não funcionam, o rádio só recebe interferência, o sol continua brilhando muito além do horário que deveria, e os animais da cidade fugiram de seus donos. O esquisito porém sábio ermitão da cidade, Bob (Tom Waits, claramente se divertindo), já anunciava o desastre eminente, e tudo vai de vez para o vinagre quando zumbis começam a circular pela localidade procurando carne humana para se alimentar.

Ronnie e Cliff descobrem a praga dos mortos-vivos depois do assassinato de dois queridos funcionários da lanchonete local, causados por dois cadáveres reanimados da região (um deles interpretado de maneira hilariante por Iggy Pop). Os oficiais meio que se comportam da maneira que deveriam em meio ao caos crescente, enquanto que sua colega, a oficial Zelda Watson (Chloë Sevigny, entregando o único personagem que tem seu arco narrativo realmente desenvolvido no filme), torna-se cada vez mais chocada com o horror que está testemunhando. Ela queria acreditar na palavra do governo – transmitida o tempo todo através da mídia – de que a mineração polar seria bom para a economia e totalmente segura. Ora, a mídia mentindo para proteger seus lucros e as grandes corporações? Não me diga…

À medida em que o número de zumbis vagando pela pequena cidade aumenta, outros personagens convivem com a ameaça de maneiras diferentes. O tímido geek Bobby (Caleb Landry Jones, do thriller Corra!, cuja crítica também está disponível aqui no Portal do Andreoli), se junta ao dono da loja de ferragens, Hank (o veterano Danny Glover), para juntos tentarem sobreviver ao massacre que acontece no centro da cidade. O fazendeiro Miller (Steve Buscemi, do drama Nancy, cuja crítica também está disponível aqui no Portal), passa o tempo todo fazendo falsas acusações enquanto dispara comentários racistas e xenófobos para qualquer um que cruzar seu caminho, até os zumbis que batem na sua porta (!).

Quem aparece também é a faz-tudo Tilda Swinton (do terror Suspiria, cuja crítica também está disponível aqui no Portal), no papel da nova legista da cidade que além de dominar a arte da espada samurai, ainda apresenta outras estranhas habilidades. Há ainda um grupo de hipsters (entre eles a popstar Selena Gomez), que chega à cidade e se junta aos moradores na esperança de conseguirem sobreviver à praga zumbi. Ou seja, o que não faltam são diferentes narrativas, o que nem sempre funciona como deveria e acaba dando uma sensação de inchaço à produção.

Obviamente, Jarmusch não é novo no artifício de utilizar um determinado gênero como forma de transmitir uma narrativa. Ele criou sua própria interpretação do Velho Oeste com Homem Morto (Dead Man, 1995), e flertou com vampiros no citado Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, 2013). Desta vez ele praticamente telegrafa o ponto de seu filme logo de cara, e quando seus personagens fazem uma referência ao “pai dos zumbis”, o falecido diretor George A. Romero, chega a ser engraçado de maneira quase intencional, pois a homenagem de certa forma já era mais do que óbvia. Este é o mesmo território sócio-político que Romero abordou em 1968 com seu clássico A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead), e de algum modo o fez com mais nuance do que Jarmusch.

Já há décadas no negócio, Jarmusch vem criando filmes utilizando seu próprio e celebrado estilo. Muitas vezes o enredo de seus filmes são secundários aos próprios personagens, e o ritmo nunca é apressado. Os acontecimentos da trama e as cenas frequentemente se desenrolam num passo lento e deliberado, e mais importante, o humor quase sempre é sombrio e inexpressivo (vide suas colaborações com Bill Murray e agora com Adam Driver). Mas no caso de Os Mortos não Morrem, Jarmusch testa os limites das características de seu cinema em um gênero que normalmente requer uma certa urgência.

Por outro lado, não há regras reais em um filme de zumbis. Jarmusch pode brincar com seu filme da maneira que ele bem entender, e no ato final da produção o filme quase entra no terreno do caos e da anarquia totais, e fica a sensação de que ele poderia ter abraçado mais este tipo de abordagem divertida. Contudo, este nunca foi o tipo de cinema do diretor, e Os Mortos não Morrem está mais preocupado em levar o espectador a refletir sobre os horrores da vida real do que levar seus próprios eventos além-tumulo mais à sério.

Os Mortos não Morrem estreia nos cinemas brasileiros no dia 11 de Julho.

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