Crítica: Raw (Grave)

Justine (a estreante em longas Garance Marillier), é uma adolescente prestes a entrar na faculdade, onde pretende estudar ciência veterinária. Sua irmã Alexia (Ella Rumpf), já estuda o mesmo curso há um ano, seguindo os passos de seus pais superprotetores, que se formaram no mesmo lugar. Justine é virgem, idealista, defensora dos direitos dos animais, e acima de tudo, vegetariana. Entretanto, na necessidade de se sentir aceita pelos colegas de faculdade, Justine, mesmo horrorizada, topa participar de um ritual organizado pelos estudantes, onde ela é forçada a comer um rim de um coelho. Após o ritual, algo dentro de Justine começa a se transformar, dando origem à uma nova, estranha e perigosa fome insaciável.

Escrito e dirigido pela diretora francesa estreante Julia Ducournau, Raw (também conhecido como Grave, França/Bélgica, 2016), marca uma estreia brilhante da cineasta de 33 anos, criando um já neo-clássico do horror arthouse. A produção já nasceu embebida em polêmica, quando exibido no TIFF – Festival de Toronto, onde supostamente diversos membros da plateia passaram mal, ou desmaiaram durante a projeção do filme, à medida em que paramédicos tiveram de ser chamados ao longo da sessão. Curiosamente, Raw não pode ser considerado um horror propriamente dito, apesar de ser uma produção que envolve o tabu do canibalismo, e mais ou menos como o sensacional Mortos de Fome (Ravenous, dirigido por Antonia Bird em 1998), e o sólido Somos o Que Somos (Jorge Michel Grau, 2010), funciona mais como uma comédia de humor-negro, ou mesmo um drama sobre o amadurecimento.

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Apesar de não ser muito correto afirmar que o canibalismo pode servir de metáfora para algum outro tipo de assunto, o ato de comer carne humana acaba sendo inusitadamente apropriado em um drama que discute sobre temas como a sexualidade, identidade, e auto-aceitação. Temas como a perda de peso que se transforma em anorexia, em uma sociedade onde o ato de comer à revelia é visto quase como um insulto, acabam encontrando tradução apropriada na fantasia do canibalismo.

O que impressiona bastante em Raw é sua natureza inquieta. Não contente em esmiuçar os tabus e mitos alimentares e extrapolá-los, o filme de Ducournau ainda entrega um interessante manifesto em torno do bullying, e da enorme dificuldade do indivíduo em ser aceito, quase como se uma fraternidade fosse formada apenas por homo-sapiens perfeitos. Estudantes são acordados no meio da noite, humilhados e subjugados. E Justine, que pensava que ir à faculdade seria uma experiência de auto-descoberta, onde ela finalmente teria a oportunidade de se expressar e encontrar a si mesma, sua individualidade e personalidade, acaba por descobrir que o mundo adulto é um lugar de atmosfera fascista e que força a submissão.

Entretanto, Justine também passa a conhecer mais a fundo o verdadeiro sentimento de amizade (e algo mais) com seu companheiro de quarto Adrien (Rabah Nait Oufella, de Entre os Muros da Escola, 2008), mesmo com a exigência de Justine em ter uma companheira de quarto do sexo feminino. E é na companhia de Adrien (que assegura à amiga de que é gay), que Justine coloca em prática seus estranhos novos hábitos alimentares, e que rendem ao filme uma arrepiante sequência em que o espectador recebe uma verdadeira aula sobre as similaridades entre a carne de porco e a carne humana. Brrrrrr…

Mais do que apenas um horror que se apoia em uma vertente que por si só já é uma tremenda muleta para o gênero, Raw (ou Grave, se preferirem), não é este terror todo que os frequentadores do Festival de Toronto pintaram. Eu mesmo, em meus vários anos como fã incondicional do Horror já vi cada coisa no cinema que até Deus duvida, e Raw nem de longe se enquadra nesta funesta categoria. Contudo, o filme funciona muito bem, escancarando como as portas da vida adulta tornam-se tão ameaçadoras para quem está prestes a cruzá-las. E uma vez que os medos, dúvidas e inseguranças passam a permear a mente dos pleiteantes à um lugar no mundo real, engolir um pedaço de carne humana de repente não parece assim tão ruim.

Raw/Grave não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar diretamente ao sistema de streaming e home-video.

https://www.youtube.com/watch?v=lihbzSyYe4c

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