Crítica: Roma (2018)

Roma

Se fizermos uma lista com os nomes dos cinco maiores diretores de cinema em atividade, três deles seriam mexicanos. O “trio parada-dura” formado por Guillermo Del Toro, Alejandro Gonzalez Iñárritu e Alfonso Cuarón é responsável por ao menos uma dezena de produções impecáveis, que envolve filmes como O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno, 2006), A Forma da Água (The Shape of Water, cuja crítica está disponível aqui no Portal do Andreoli), Babel (2006), Birdman (2014), O Regresso (The Revenant, 2015), Filhos da Esperança (Children of Men, 2006) e Gravidade (Gravity, 2013), entre outros.

Tanto Del Toro, quanto Iñárritu e Cuarón já levaram para casa o Oscar de Melhor Diretor. Del Toro levou por A Forma da Água; Iñárritu já levou logo dois, pelos excepcionais Birdman e O Regresso; enquanto que Cuarón já levou o seu pelo drama espacial Gravidade (Gravity, 2013). Entretanto, ao contrário de seus parceiros de pátria, Cuarón ainda não emplacou um Oscar de Melhor Filme, mas isso está muito perto de mudar com o lançamento deste Roma (MEX/EUA, 2018), uma verdadeira obra-prima que consiste no primeiro trabalho de Cuarón no México desde E Sua Mãe Também (Y Tu Mamá También, 2001).

Roma é o raro tipo de filme que não tem pressa nenhuma para dizer a que realmente veio, que remete aos primeiros trabalhos de Cuarón, aqueles de escopo mais íntimo, ao contrário das grandes produções em que o diretor se envolveu nos anos seguintes. Roma é também uma demonstração extrema do total comando técnico de Cuarón em seu oficio. O agridoce conto sobre uma criada em um bairro classe-média da Cidade do México no início dos anos 70, canaliza as memórias do amadurecimento do próprio diretor em uma arrebatadora e meditativa saga em preto-e-branco que explora sua história de dentro para fora.

No centro da história está Cleo (a notável estreante Yalitza Aparicio), que trabalha para uma abastada família formada pelo Dr. Antonio (Fernando Grediaga) e sua energética esposa Sofía (Marina de Tavira, excelente), além de suas quatro crianças. Uma descendente de tribos indígenas Mesoamericanas, Cleo leva uma rotina confortável como uma espécie de extensão da família para a qual trabalha. Quando as crianças se juntam para assistir TV à noite, ela está sempre lá com eles. Ao lado de sua colega de trabalho, Adela (Nancy García Garcia), Cleo desfruta de uma vida social ativa, e até de um romance com um praticante de artes-marciais (Jorge Antonio Guerrero). Cleo, entretanto, durante grande parte do filme, absorve as energias das pessoas ao redor de si em silêncio, incerta de como responder ou reagir.

Durante a maior parte da primeira hora do filme, o drama é sutil; Cleo habita um mundo estável, onde a rotina de cozinhar, limpar e cuidar das crianças completa o que parece ser um ambiente solidário. E então, as coisas começam a mudar quando Cleo enfrenta uma crise de saúde e não sabe como proceder quando seu relacionamento toma um rumo inesperado. Seu patrão deixa a família para embarcar em uma misteriosa viagem de negócios, enquanto Sofía lida com seus problemas matrimoniais que ela tenta esconder dos filhos. Cleo, observadora que é, sabe que a grande crise está chegando. Cuarón gradualmente deixa pistas de que a luta íntima pertence a um escopo muito maior. Num determinado momento, um terremoto sacode as paredes de um prédio, indicando a possibilidade de que esta existência aconchegante pode ruir à qualquer momento. Fica implícita aqui uma metáfora para os desafios culturais e políticos atuais, mas Cuarón nunca perde o foco real de sua narrativa.

Roma constrói sua narrativa à partir de pequenos momentos, à medida em que a câmera do diretor passeia de maneira lenta por várias cenas, enquanto despeja discretamente detalhes sutis de sua história. É o tipo de filme que exige mais de uma sessão, o que acaba tornando a controversa decisão de Cuarón em lançar o filme através da Netflix uma boa notícia, mesmo que visualmente o filme funcione de maneira mais impactante na tela grande.

Graças à notável fotografia em 65mm à cargo do próprio Cuarón, fica a impressão de que o cineasta está escrevendo suas memórias através de imagens em movimento, criando um efeito hipnótico e de estética altamente estilosa. Roma é de longe a narrativa mais experimental da já audaciosa carreira de Cuarón, onde ele demonstra o apuro visual de seus Filhos da Esperança e Gravidade em favor de um criativo e novo tipo de intimidade. Em mais uma demonstração de ímpar habilidade, Cuarón atrai o público na direção de uma determinada sequência aparentemente simples, apenas para pegá-lo desprevenido com novas informações. Não há reviravoltas mirabolantes, mas Roma surpreende através de inesperados desenvolvimentos com um fluxo altamente orgânico. Em um exemplo memorável, um longo diálogo dentro de um cinema inclui uma gigantesca revelação, capaz de mudar o destino de uma vida, e a cena então continua sob absoluto silêncio por vários minutos, apenas para desferir um certeiro golpe no estômago do espectador.

Ainda que a narrativa nunca leve Roma para um território inesperado, Cuarón cria um ambiente tão dinâmico que isso pouco importa. A sofisticação de seu design de som Dolby Atmos (que fará os espectadores do filme na Netflix correrem para as salas de cinema), leva a uma imersão total que enfatiza o turbulento mundo habitado por Cleo, que vai muito além de suas questões interpessoais. Em mais de uma ocasião, o efeito leva à extremos apocalípticos, quando a chegada das forças da natureza sobrecarrega os efeitos-sonoros à um nível chocante.

De qualquer forma, Roma também se destaca como uma obra de época, que retrata um México sob o fervor do ativismo de 1968 e do influxo de uma nova cultura popular. Trechos de programas de TV e filmes vêm e vão, emplacando uma justaposição com o ciclo da vida diária de Cleo e companhia. Outros dramas aparecem na trama, como a emocionante e devastadora discussão entre Sofía e seu marido, que se encerra com a chegada de uma parada militar que varre as ruas, devastando-a e marginalizando seu sofrimento. Em diversas oportunidades, Cleo é forçada a absorver os problemas das outras pessoas. “Não importa o que digam a você, nós estamos sempre sozinhas”, uma nervosa Sofía diz a Cleo numa noite, e é apenas bem mais tarde que este devastador mantra realmente a atinge, em uma das mais tristes sequências do cinema recente.

Entretanto, mesmo esta desoladora sequência de eventos prepara o palco para uma recompensa final, refletindo a rica tapeçaria emocional que Cuarón construiu pouco a pouco. Muito da paciente abordagem do filme é apoiada na extraordinária performance de Yalitza e sua Cleo. Mesmo que ela seja forçada a servir como uma testemunha silenciosa, ela nunca é totalmente removida das circunstâncias ao seu redor. Ela habita os bastidores da história, mas nunca é irrelevante, e quando num momento-chave as circunstâncias exigem, ela toma a frente e se impõe de uma vez por todas.

À medida em que Cleo enfrenta uma barreira após a outra, aviões surgem na tela como um refrão recorrente, nos lembrando da inexorável passagem do tempo e de sua capacidade de ser simultaneamente cíclico e surpreendente. Tais tipos de artifícios ajudam Roma a escapar de algumas armadilhas de seu enredo, assim como a falta de um melhor desenvolvimento dos personagens infantis, que são tão centrais na vida de Cleo.

Esta história de amadurecimento já foi contada inúmeras vezes em diferentes contextos, mas Cuarón é sábio o suficiente para constatar em seu público que a história de Cleo não. E o público embarca, sem titubear. Cinco anos depois da intensidade de Gravidade utilizar o cinema para transcender os limites da Terra, Roma nos traz de volta ao chão sob uma nova e brilhante perspectiva.

Roma estreia no catálogo da Netflix HOJE, 14 de dezembro de 2018.

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