Crítica: Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk) | 2018

If Beale Street Could Talk

Depois do excepcional vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2016, Moonlight: Sob a Luz do Luar (cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), muito se esperou pelo próximo trabalho de seu realizador, o cineasta Barry Jenkins. Com Moonlight, Jenkins se revelou um diretor de senso visual apuradíssimo, além de um contador de histórias capaz de uma poderosa intensidade emocional que garante profundidade ímpar a seus personagens. No cinema de Jenkins, um olhar vale mais do que mil palavras.

Estas mesmas qualidades são aplicadas nesta sua suntuosa adaptação do romance Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk, EUA, 2018), escrito pelo grande James Baldwin em 1974. Trata-se mais uma vez de uma história bastante íntima, sobre indivíduos afro-americanos arrasados pela injustiça num dos períodos mais duros da história americana. Extremamente fiel ao livro de Baldwin, e assim como Moonlight, Beale Street carrega sua narrativa de maneira bastante lenta e reflexiva, onde a beleza de sua concepção e o sentimento puro por trás de sua realização demandam total atenção do espectador. Jenkins evoca o lado mais humanista e poético da obra de Baldwin, e ainda que a história seja centrada na discriminação racial e injusto encarceramento, o foco da produção é mais pessoal do que político.

Trata-se de um filme sobre a dignidade negra e a resiliência frente à dor, mas também sobre o poder unificador do amor como um mecanismo de sobrevivência. O filme de Jenkins celebra a força da conexão entre um homem e uma mulher, assim como os profundos laços da família, da amizade e da comunidade. Não falta desespero no drama explorado pelo diretor, mas também há uma infalível esperança, e é esta inspiradora qualidade que atrai o espectador ainda mais para dentro da história contada por Jenkins.

O amor entre os jovens Tish (Kiki Layne, da vindoura sci-fi Captive State), que assim como no livro é a narradora da história; e Alonzo (Stephan James, do excelente Selma: Luta Pela Igualdade), um escultor que atende pelo apelido de Fonny, salta aos olhos desde as primeiras cenas, fotografadas com imenso requinte visual por James Laxton (do citado Moonlight), que captura seus frames com uma belíssima saturação de cores quentes. O casal caminha lentamente, de mãos dadas, através de um parque até chegar à uma vista estonteante do Rio Hudson, e é então que Tish revela ao público através da narração extremamente fiel ao livro, que Fonny está preso. Na cena seguinte, Tish visita Fonny na prisão, e revela à ele que está grávida, e com absoluta confiança, ela assegura à ele que conseguirá libertá-lo antes do bebê nascer, e a força de seu amor é tão forte que nem Fonny e nem o público, chegam a duvidar das palavras dela.

Fonny foi acusado de estupro, mesmo tendo um álibi que o coloca à milhas de distância da cena do crime. Enquanto Tish e sua família lutam para limpar o nome de Fonny, Jenkins leva a narrativa adiante, alternando cenas do amadurecer do relacionamento entre os dois, com o duro momento atual em que vivem, onde cada derrota na batalha legal para libertar Fonny aumenta consideravelmente o sentimento de angústia do público. Vale ressaltar o belo trabalho de edição da dupla Joi McMillon e Nat Sanders (também de Moonlight), que garante fluidez às duas linhas narrativas paralelas.

A química palpável entre Layne e James fazem de Tish e Fonny o coração do filme, indiscutivelmente. Mesmo com Jenkins romantizando-os um tanto excessivamente, os dois parecem flutuar em câmera lenta nas cenas que precedem a prisão de Fonny. Tal beleza desta relação quase que os transforma em um casal de conto de fadas, onde mesmo a pocilga que Fonny chama de apartamento, parece iluminada como uma espécie de caverna mágica, onde tudo é possível. De certa forma, esta abordagem acaba por dar mais peso às dificuldades que os dois enfrentam frente à um sistema que mastiga pessoas como Fonny com terrível regularidade. Não fosse ele o protagonista da obra, seu personagem seria apenas mais um jovem negro qualquer vivendo o preconceito na pele. Porém, às cenas-chave que moldam a história e a mantém realista invariavelmente envolvem outros personagens.

Uma destas cenas acontece quando Tish conta para sua mãe, a durona Sharon (a ótima Regina King, de Jerry Maguire: A Grande Virada), sobre sua gravidez. Sharon recebe a notícia sem surpresa ou alarde, e ainda ajuda a filha a dar a notícia para seu bem-humorado pai, Joe (Colman Domingo, da série Fear the Walking Dead), e sua irmã desbocada, Ernestine (Teyonah Parris, de Cara Gente Branca, 2014), que revelam-se ambos solidários com a situação. Com apenas algumas pinceladas, fica fácil para o público conhecer estas pessoas e reconhecer a força de seus laços.

Os coadjuvantes continuam segurando a força da narrativa, quando decidida a tomar as rédeas da situação, Sharon instrui Joe a ligar para a família de Fonny para dar-lhes a notícia, já esperando o drama. E quando a família dele chega, realmente o clima pesa, com as palavras duras da mãe de Fonny (Aunjanue Ellis, de Homens de Honra, 2000) e a presença das rígidas irmãs do jovem. Nenhuma delas reserva sequer um tempo para dar atenção à Tish. Apenas o pai de Fonny (Michael Beach, de O Dia do Atentado, cuja crítica você também confere aqui no Portal do Andreoli), recebe a notícia de maneira otimista. Toda a sequência envolvendo as duas famílias é um arraso, repleta de raiva e ressentimentos mas também de humor ácido, especialmente no que diz respeito à fabulosa Ernestine de Parris.

Entretanto, o momento mais dramático do filme surge quando Sharon viaja para Porto Rico, onde a vítima do suposto estupro pelo qual Fonny foi incriminado (Emily Rios, da série Breaking Bad) se encontra, com o objetivo de fazê-la constatar que na verdade ela teria sido manipulada a escolher Fonny na fila de suspeitos por um policial corrupto (Ed Skrein, de Deadpool). A maravilhosa Regina King é uma verdadeira powerhouse não só nesta sequência mas em todo o filme, talvez na melhor performance de sua carreira. É extremamente gratificante ver a atriz em um papel que finalmente faz justiça a todo seu talento.

A descrição de todos estes momentos acima, serve para que eu possa exemplificar a força do elenco de apoio do filme, que acaba por se sobressair à dupla de protagonistas, o que funciona à favor mas também contra a produção. Mesmo com Tish e Fonny sendo dois personagens de apelo e que cativam o público, falta à eles uma cena de impacto comparável às citadas acima. A conclusão do filme também carece de impacto e parece um tanto apressada, ainda que seja moralmente válida e relevante.

Mesmo com um clímax decepcionante, Se a Rua Beale Falasse é uma produção extremamente rica, que mais uma vez mostra o talento ímpar de Jenkins para contar uma boa história com vibração e textura. A impecável ambientação dos anos setenta, aliada ao figurino e design de produção, e à já citada fotografia impecável de James Laxton, compõem uma experiência cinematográfica meticulosamente calibrada e visualmente sedutora, que honra o material na qual é baseada, e que discorre com beleza e caráter sobre os difíceis temas aos quais aborda.

Se a Rua Beale Falasse ainda não tem data de estreia definida nos cinemas brasileiros, mas tal data deve ser divulgada nas próximas semanas.

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