Crítica: The Tale (2018)

“Eu não sou a vítima desta história, eu sou a heroína.” Esta fala resume bem a relevância deste belo drama da documentarista Jennifer Fox, seu primeiro como diretora de um longa-metragem. Fox também assina o roteiro da produção, que consiste em um duro e cru olhar sobre o abuso, o trauma, e o poder da memória. A experiência de Fox como documentarista influencia de maneira eficiente a abordagem desta história sobre tragédias enterradas, que soa refrescante e nova. The Tale (EUA/ALE, 2018), exibido no Festival de Sundance deste ano, não poupa seu público, e apresenta uma história sobre abuso infantil que pode fazer com que algumas pessoas desistam do filme no meio do caminho. O filme de Fox certamente não é uma produção digerível para todos, mas é bastante raro encontrar um filme tão impiedosamente confrontador e emocionalmente complexo sobre este difícil tema.

Em The Tale, a sempre ótima Laura Dern (da comédia Wilson, cuja crítica você também confere aqui no Portal do Andreoli) interpreta Jennifer, uma famosa jornalista e professora que vive com seu namorado (o cada vez melhor Common, de John Wick: Um Novo Dia Para Matar) em Nova York, e que parece viver uma vida feliz e estável. Tal estabilidade é estilhaçada quando sua mãe (a impecável veterana Ellen Burstyn), encontra uma história que Jennifer escreveu para um projeto de escola quando tinha apenas 13 anos de idade.

A história é sobre dois orientadores que trabalharam com Jennifer na época (interpretados pela bela Elizabeth Debicki e Jason Ritter em longos flashbacks), e na história, existem detalhes que retratam relações sexuais. Jennifer se lembra de ter vivenciado algo especial com estes adultos, mas ela convenceu a si mesma ao longo dos anos de que não foi nada demais. Para ela, sua primeira vez foi com um homem mais velho. Mas à medida em que ela começa a olhar com mais cuidado para a verdade sobre o que aconteceu então, ela constata que existem perguntas que precisam ser respondidas.

The Tale

Em uma ousada decisão narrativa do roteiro de Fox, Jennifer faz algumas destas perguntas diretamente para as versões passadas dos perpetradores de seu abuso, quase como se eles estivessem sendo entrevistados em um documentário. A quarta parede é constantemente quebrada, e a Jennifer dos dias atuais conversa regularmente com sua versão adolescente, interpretada com delicadeza por Isabelle Nélisse (do terror Mama, 2013). É como se Jennifer estivesse transformando a narrativa de seu abuso em uma jornada de empoderamento, mas ao mesmo tempo, a Jennifer adulta está constatando o tamanho do dano que lhe foi causado, e cabe à ela, somente à ela, reivindicar a verdade.

The Tale é um dos filmes mais gráficos já lançados relacionados ao tema do abuso infantil, e um surpreendente Jason Ritter merece todos os créditos por aceitar um papel tão repugnante e arriscado. Entretanto, um dos maiores méritos do filme é justamente o fato de Fox não poupar seu público dos horrores retratados em sua narrativa. Em um dado momento, Jennifer confronta uma de suas alunas sobre a perda de sua virgindade, e em seguida surta com a mesma quando esta hesita em responder. Pois segundo a protagonista, é preciso ser capaz de revelar a si mesma se você pretende fazer a mesma pergunta para outras pessoas. E The Tale é bastante similar neste aspecto: um filme vulnerável e ao mesmo tempo impiedoso na maneira com que revela seus detalhes mais sombrios.

Tanto que em alguns momentos, parece que Fox exagera um pouquinho no excesso de diálogos reveladores de seu roteiro, que por vezes não soam tão realistas. Há um certo excesso de cenas onde Jennifer conversa com si mesma, examinando seus sentimentos, e também com seu namorado e sua mãe. E este excesso de texto nem se faria necessário, dado o talento descomunal de Laura Dern, que consegue transmitir tanto, apenas com o olhar e linguagem corporal. E eu pessoalmente achei sua performance mais ressonante quando sua personagem internaliza a tempestade de sentimentos, do que quando os coloca para fora.

Contudo, o diálogo exagerado se encaixa no conceito central do filme, que se estabelece como um mergulho pessoal e emocional em direção ao trauma e suas cicatrizes atemporais. The Tale é um filme sobre como a memória é capaz de enganar o indivíduo, e como tal indivíduo permite este engano de forma que possa moldar sua vida de maneira que ele próprio não reconhece ou mesmo compreende. Um filme atual e que ganha importância extra nos complicados dias em que vivemos hoje.

The Tale foi adquirido pelo canal HBO, e o filme estreia no catálogo da emissora no próximo dia 27 de Maio.

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