Crítica: The Vast of Night (2019)

Certas décadas de nossa história carregam seus próprios medos e neuroses, algumas delas bastante tangíveis. Os anos 50 produziram o tipo de cultura do medo que tem sido infinitamente explorada pelo horror e a sci-fi ao longo dos anos. A questão da Guerra Fria, o desenvolvimento da tecnologia e os alienígenas se tornaram combustíveis para alimentar o medo na sociedade da época. Existe uma singular simplicidade no cinema e na televisão que captura o impacto emocional destas ansiedades, permitindo aos cineastas aprimorar metáforas através do estilo, diálogo e ambientação, ao invés de amostras de violência e imagens assustadoras.

O filme de estreia do diretor Andrew Patterson, The Vast of Night (EUA, 2019), aplica toda a trepidação convencional do período em que se passa o filme, ao mesmo tempo em que entrega uma narrativa concisa que utiliza-se de um sólido suspense sci-fi. A sequência de abertura já convida o público a adentrar uma sala de estar vintage onde na TV está sendo transmitida a abertura de um antigo show chamado “Paradox Theater”, numa clara referência à clássica série Além da Imaginação. Patterson rapidamente estabelece o tom enquanto a tela da antiga TV engole a câmera, e o programa em preto e branco aos poucos se dissolve em um cenário dos anos 50, mais precisamente o ginásio de uma escola no Novo México. É aqui que a jornada deste The Vast of Night começa.

Jake Horowitz interpreta Everett, um DJ adolescente que apresenta um programa de rádio em sua pequena cidade, Cayuga, cuja população é de 492 habitantes. Numa noite, ele caminha tranquilamente pelo mencionado ginásio, que está sendo preparado para o grande jogo de basquete do colégio, e lá ele encontra com Faye (Sierra McCormick), sua colega de classe e operadora da rádio, e assim como ele, uma entusiasta da tecnologia. Os dois então vão até a estação de onde costumam transmitir o programa, e o que parecia ser mais uma noite comum para a dupla acaba se transformando em algo muito mais excitante e aterrorizante, quando um som misterioso surge em uma das chamadas no painel de controle de Faye.

Os dois então reproduzem o som em seu programa e pedem aos ouvintes para ligarem caso alguém saiba a origem do estranho ruído. Um dos ouvintes, Billy (Bruce Davis, do recente Cascavel, cuja crítica está disponível aqui no Portal do Andreoli), informa Everett que o som lhe é familiar, e remete à época em que ele serviu no exército. Um idoso negro e doente, Billy não tem nada a perder por romper com qualquer confidencialidade militar, e passa a alimentar a curiosidade de Faye e Everett, uma vez que eles decidem reportar o que ouviram.

Patterson sabiamente escolhe por não revelar a aparência de Billy, preferindo colocar todo o foco em sua voz, que atrai cada vez mais ouvintes para escutar sua dolorosa história. Há momentos durante os diálogos de Billy em que a tela fica totalmente escura, e tal método reflete como o público da época se apoiava e confiava no rádio, tanto em relação às notícias quanto ao entretenimento. Um tempo em que famílias inteiras se sentavam ao redor de um rádio e seguiam fielmente a voz que os guiavam ao mundo da imaginação. Tal artifício é realmente uma grande sacada de Patterson, pois exemplifica como a palavra pode ser tão intrigante e assustadora quanto as imagens e outros recursos visuais. Vale ressaltar também o belo trabalho de Davis, que entrega uma performance repleta de mágoas e sofrimento, onde o ator transmite sua exaustão com relação ao racismo que sofria. Ele declara que aqueles que trabalhavam para a tal operação militar eram todos pessoas de cor e mulheres, porque ninguém jamais os ouviria.

The Vast of Night é todo permeado por uma narrativa nada convencional. À medida em que Everett e Faye se tornam cada vez mais obcecados pela história contada por Billy, Patterson aproxima sua câmera em close-ups extremos enquanto eles escutam o que o velho tem a dizer. A técnica amplifica seus medos de maneira sutil, ao mesmo tempo em que passa a funcionar como um presságio de uma invasão de origem desconhecida. Há um punhado de cenas no filme cuja transição não é totalmente fluída, e mais parecem uma espécie de comercial com imagens em preto e branco dos personagens. O artifício serve para lembrar o espectador de que esta é uma história dentro da história do “Paradox Theater”.

Como o filme se concentra no som, estes métodos narrativos fazem uma bela homenagem à era clássica da televisão, onde antologias como a citada Além da Imaginação, The Outer Limits, Os Invasores, entre outras, reinavam absolutas na programação. O controle de câmera de Patterson é impressionante, e o novato possui um olhar instintivo no que diz respeito a transmitir emoção, perigo e medo de maneira sutil e natural. As tomadas panorâmicas da pequena cidade transportam o público para dentro da cidadezinha, sentindo e experimentando a aventura ao lado de Faye e Everett.

McCormick brilha no papel de Faye, trazendo vivacidade à personagem, que por sua vez transborda sentimentos como esperança, excitação e intriga. Apesar de The Vast of Night ser ambientado nos anos 50, Faye não se perde nos tradicionais papéis femininos da época. A garota é uma ávida leitora de ‘Mecânica Moderna’ e delira com os avanços tecnológicos que estão sendo feitos nos carros e na comunicação. No entanto, por mais amáveis que os personagens de Faye e Everett sejam, eles não possuem um arco ou evoluem dentro da narrativa. Portanto, o filme perde um pouco a oportunidade de dar mais ressonância emocional à sua história.

Nos quesitos técnicos, entretanto, o filme tem diversas qualidades. O cinegrafista M.T. Littin-Menz (da cinebiografia Mãos de Pedra, 2016), opta por utilizar uma estética visual granular, que captura com sucesso a América rural dos programas de TV dos anos 50. Amplificando a sensação de medo e paranóia da época, os roteiristas James Montague e Craig W. Sanger constroem rápidas trocas de diálogo em seu roteiro, enquanto a possível ameaça de uma invasão alienígena se aproxima.

The Vast of Night encapsula todos os elementos de inquietação em torno da era da Guerra Fria, ao mesmo tempo em que cultiva um bacana subtexto sobre o amadurecimento de seus personagens, suas ambições, o despertar do romance e suas esperanças para o futuro. Assim como seus personagens são atraídos pelo som peculiar e o céu escuro de uma fatídica noite, The Vast of Night é um filme que me deixou ansioso pelo próximo trabalho do jovem diretor Patterson e quem sabe, um novo capítulo do programa Paradox Theater.

The Vast of Night não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país diretamente através de serviços de streaming e VOD.

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