O Acontecimento: drama chocante baseado em autobiografia de Annie Ernaux debate aborto legal

No dia 14 de março de 2000, a professora e escritora francesa Annie Ernaux publicou um livro de tema polêmico. Uma obra sincera e intimista que convida o leitor a mergulhar no desamparo de uma jovem estudante de literatura, na aurora de seus vinte anos, que descobre uma gravidez não planejada. Vivendo em uma cidade universitária na conservadora França dos anos 60, época em que a interrupção voluntária da gravidez ainda era criminalizada, a jovem decide procurar, em segredo, métodos insalubres para tentar interrompê-la.

Essa narrativa honesta e arrojada se chama ‘O Acontecimento’; uma autobiografia que remonta à solidão e desespero vividos por Ernaux num contexto em que interromper a própria gravidez de forma segura era impossível, e o estigma de uma gravidez precoce vinha carregado do julgamento feroz da sociedade. Muito à frente de seu tempo, a premissa inspirou, vinte e um anos depois do primeiro lançamento do livro, a criação de um filme.

O homônimo, dirigido pela cineasta e roteirista franco-libanesa Audrey Diwan, conhecida por seu ativismo com relação a pautas de igualdade de gênero na indústria cinematográfica, é estrelado por Anamaria Vartolomei no papel de Anne, segue, inicialmente a mesma narrativa do livro. A protagonista descobre uma gravidez que não foi planejada, no auge de suas atividades acadêmicas no ramo da Literatura, entrando em intenso conflito emocional por não poder levá-la adiante.

A grande diferença entre o livro e o filme, é que o segundo representa esse conflito emocional, até mesmo físico, em algumas cenas, de maneira muito mais gráfica e aprofundada, que ressalta a cada cena o extremo domínio que a diretora possui da obra.

Cena de “O Acontecimento” / Foto: divulgação do filme

Um primeiro elemento observável que reforça, logo de cara, esse domínio, é a fotografia. Predominantemente em tons de azul, uma cor emblemática e ambígua que pode ser associada à juventude, calmaria, confiança e serenidade, mas também à tristeza, profundidade…a escolha do predomínio da cor azul para compor figurino e até mesmo o filtro levemente azulado utilizado na fotografia é, justamente, uma forma de retratar a profundidade da questão emocional vivida pela protagonista, que no auge de sua juventude e ascensão acadêmica, se depara com uma situação que lhe causa tanta dor.

Mas a paleta de cores não é o único aspecto da fotografia que chama atenção pela excelência, basta ler as primeiras dez páginas do livro de Ernaux para perceber quão intimista ele é; a fotografia é recheada de takes que focam em situações corriqueiras e inerentes ao universo feminino –  na espera ansiosa pela menstruação, na relação da jovem com o próprio corpo, em um abraço mais demorado na mãe – e transmitem no espectador a sensação de estar assistindo a algo particularmente pessoal, ainda que intrigante.

Isso não significa que o filme é composto apenas por sutilezas, a ambiguidade é uma constante em seu processo de captura. As cenas de tensão são extremamente gráficas e infligem muito desconforto, vê-las requer estômago forte. A forma como a direção equilibra cenas tão delicadas com outras tão explícitas é louvável, trazendo a carga dramática necessária para tratar do assunto.

As nuances do roteiro ressaltam o conservadorismo daquela época, e o desamparo absoluto da jovem perante uma situação que sente que não pode controlar, colocando em pauta a criminalização do aborto, mas sem tornar o tema cansativo. Na verdade, o espectador é tão engolido pela intensidade da situação que o background político-social deixa de se tornar uma polêmica para se tornar uma reflexão.

Em apenas 1h40min de filme, Audrey Diwan entrega uma narrativa à altura do clássico contemporâneo de Ernaux. Intenso, perturbador, direto, sem romantizações.

Nada disso seria possível sem a entrega de Anamaria Vartolomei na pele de Anne, que mergulha de cabeça na personagem e seu sofrimento para entregar uma jovem vívida, enigmática e determinada, que sucumbe gradativamente ao caos do próprio desespero. Encarnando tão poderosamente a persona da jovem mulher, ela consegue fazer dessa história um espetáculo, ainda que doloroso e chocante.

Vencedor do Leão de Ouro no festival de Veneza de 2021, O Acontecimento é um filme avassalador, que traz à tona o debate sobre a interrupção voluntária da gravidez de maneira incisiva, sem cortes e com uma profundidade admirável, que não só reafirma a importância da obra literária de Ernaux, como também sua contemporaneidade.

**O conteúdo e informação publicado é responsabilidade exclusiva do colunista e não expressa necessariamente a opinião deste site.

Imagens:  Divulgação do filme  ¨O Acontecimento”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Compartilhe esta notícia

Mais postagens