As Tops do Kacic: Crítica: Um Cadáver Para Sobreviver

Para simplificar um pouco as coisas, este Um Cadáver Para Sobreviver (Swiss Army Man, EUA, 2016) é um dos filmes mais bizarros de 2016. Só não digo que é o mais bizarro, pois o insano The Greasy Strangler não teria como ser superado. Tal estranheza na narrativa e concepção da produção funciona tanto à favor, como contra o filme, que se em algumas passagens encanta o espectador com sua maneira franca e poética de falar sobre a vida, em certos momentos desperdiça potencial com sequências extremamente forçadas e também de mau gosto.

Os ferrenhos defensores do filme alegarão que o mau gosto é intencional e necessário, e uma vez que o público mergulha na incomum narrativa do filme, tal vertente da produção realmente até parece justificável. Em meu entendimento, no entanto, Um Cadáver Para Sobreviver consiste na verdade em uma metáfora cinematográfica de 97 minutos, que utiliza-se como analogia para discutir temas tão pertinentes à vida como a conhecemos hoje, sendo o principal deles a depressão, e como a ponte entre este terrível estado da condição humana e a solidão crônica, é curta e perigosa. Com um tema tão interessante e pertinente como este em mãos, era desnecessário insistir tanto em sequências pontuadas por flatulências em profusão e genitais que funcionam como bússolas. Mas é esta a maneira que a dupla de diretores e roteiristas da produção, os estreantes em longas Dan Kwan e Daniel Scheinert, decidiram abordar sua história, para o bem e para o mal.

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Um Cadáver Para Sobreviver tem início mostrando o jovem Hank (Paul Dano, de Sangue Negro e Pequena Miss Sunshine), que encontra-se isolado no que parece ser uma ilha deserta. Às vésperas do suicídio, Hank avista um cadáver na beira da praia, e após vasculhar o corpo em busca de alguma informação, acaba testemunhando a improvável ressurreição do mesmo. Hank então batiza seu novo amigo de Manny (o eterno Harry Potter Daniel Radcliffe), e através da amizade que surge entre os dois, Hank encontra a força e a esperança que precisava, para começar sua longa jornada de volta para casa.

É claro que aos poucos, a jornada de Hank revela-se mais do que apenas um retorno ao lar, e vai evidenciando a verdade em torno do isolamento do protagonista. É louvável a maneira com que os Daniels diretores do filme trabalham o tema da amizade na produção, e de como o sentimento oriundo da relação de amizade verdadeira pode curar o quebrantado espírito humano. Motor de toda a produção, o relacionamento incomum que surge entre Hank e o ressuscitado Manny serpenteia por temas que falam ao coração, ensinando e, principalmente, relembrando a importância de tantos pequenos detalhes que deixamos passar em nosso dia a dia.

Pode parecer batido, mas a maneira com que a produção entrega suas mensagens é tão original e incomum, que tudo no filme soa como novo. A aura da produção é poética, e a narrativa repleta de subjetivismo. O filme em si é subjetivo, e carrega consigo um forte efeito catártico, tanto para o protagonista como para o espectador, que dificilmente não se identificará com diversos dos temas discutidos na produção. É nesta mescla entre o abstrato e o tom de fábula, que Um Cadáver Para Sobreviver acaba se perdendo um pouco. Um humor repleto de ingenuidade decorrente desta estranha mistura também permeia a produção, e nem sempre funciona. Aliás, poucas vezes funciona, e em alguns momentos, literalmente, o humor pastelão acaba engolindo a profundidade de alguns dos diálogos entre os personagens centrais. O que dá um tom inconstante para a produção como um todo.

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Esta inconstância no entanto, em nenhum momento interfere na performance maravilhosa e honesta de seus protagonistas, Paul Dano e Daniel Radcliffe. Dano mais uma vez emprega seu semblante triste em um personagem emocionalmente frágil e confuso, enquanto que Radcliffe, com certeza no papel mais maluco que interpretou ou interpretará em sua carreira, dá um show no papel do morto que volta à vida e se torna uma espécie de “canivete-suíço humano”, cujas mil e uma utilidades abrem os caminhos para a libertação de seu novo melhor amigo. É precisamente esta metáfora, da amizade que expande horizontes, que melhor captura a aura repleta de poesia da produção.

Produção que se valoriza também de sua excelente, vibrante e original trilha-sonora incidental, à cargo da dupla de estreantes Andy Hull e Robert McDowell, que assim como o também estreante Andrew Hung, compositor do já citado The Greasy Strangler, entrega um dos melhores scores do ano, e um dos mais inovadores do cinema nos últimos anos. O filme também conta com um sensacional design de produção, que literalmente dá vida a montagens construídas com material descartável e detritos em geral, dando um ar de brincadeira lúdica à diversas passagens da produção. Vale ressaltar também os efeitos-visuais da produção, usados com parcimônia mas com extrema originalidade ao longo da narrativa.

Definitivamente uma obra de caráter puro e ingênuo, mas ao mesmo tempo inteligente em sua maneira de lidar com temas que corrompem a alma humana e forçam uma reação do indivíduo em detrimento da morte, Um Cadáver Para Sobreviver por pouco não se tornou uma obra realmente definitiva sobre o tema. É uma produção que revela um imenso e bem-vindo talento de seus novos e energéticos diretores, e ratifica também os talentos de sua dupla de protagonistas, cada vez melhor em seu ofício. Mas ao mesmo tempo, falha em entregar de maneira completa sua mensagem, seja pelo excesso de disparates que tanto contrasta com a poesia inerente de sua narrativa, ou por sua conclusão desnecessariamente na contramão de tudo o que vinha defendendo até então. Entre seus evidentes prós e contras, Um Cadáver Para Sobreviver acaba sobrevivendo, mesmo que por alguns momentos, com a corda no pescoço.

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Imagens: Eduardo Kacic

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