Crítica: Os Tigres Não Têm Medo (Tigers Are Not Afraid) | 2019

Os Tigres Não Têm Medo

O que você tem quando um filme é efusivamente elogiado por mestres do horror e da fantasia como Stephen King, Guillermo Del Toro e Neil Gaiman? A resposta é… Hype. A expressão, que se tornou parte do vocabulário da molecada, está relacionada às expectativas criadas pelo público para determinado filme ou série, etc. Quanto maior a expectativa, maior o hype. O problema é que, quanto maior o hype em cima de uma produção, maiores também são as chances do público se decepcionar com ela, o que NÃO é o caso deste sensacional Os Tigres Não Têm Medo (Tigers Are Not Afraid, MEX, 2017/2019), produção mexicana dirigida de maneira brilhante por Issa López (roteirista do sólido drama policial 600 Milhas), que vem arrasando nos festivais por onde passa e que encantou os gênios citados lá em cima no início do texto.

Chega a ser absurdo pensar que um filme tão bom e original tenha ficado mais de dois anos na gaveta até conseguir finalmente distribuição nos cinemas americanos, mas a espera com certeza valeu a pena. A espetacular e tocante jornada de infância retratada por López transborda a energia do cinema do citado Del Toro, repleta de terror e choques emocionais capazes de gelar a espinha e derreter o coração do espectador. Os Tigres Não Têm Medo é um retrato da demoníaca infecção causada pelos cartéis do tráfico de drogas no México, testemunhada por uma criança, e incrivelmente contada na forma de uma fábula sombria que mostra a desolação causada pelo narcotráfico nas vidas dos jovens ao sul da fronteira mexicana, onde o termo “sobrevivência” ganha uma urgência nunca antes sentida.

A jovem Paola Lara interpreta Estrella, uma garota mexicana que deseja mais do que tudo que sua mãe desaparecida volte para casa. Ela não têm família e nem meios para sobreviver sozinha, e logo começa a presenciar visões de sua mãe, numa espécie de pesadelo enquanto está acordada. Ela então conhece um garoto de rua chamado Shine (Juan Ramón López), cuja gangue de garotos órfãos assim como ele, vivem em telhados e se escondem de perigosos sequestradores do cartel, pois uma vez que o cartel leva alguém embora, não tem mais volta. Porém, não demora para os garotos se meterem em uma confusão justamente com os “oficiais” do cartel, colocando todos, incluindo Estrella, ainda mais em perigo. Em outras palavras, é apenas o começo de uma narrativa selvagem, a qual você até desejaria que fosse distópica, como forma de diminuir um pouco seu impacto.

Veja Também  Crítica: Mandy (2018)

Uma vez que Os Tigres Não Têm Medo transita das estatísticas do cartel mexicano para sua primeira cena, a professora de Estrella pede para que a classe descreva seu conto de fadas favorito (antes do tiroteio começar lá fora). Na verdade, a diretora López está preparando seu público para a épica cruzada que está prestes a acontecer, uma jornada impulsionada por imagens fantásticas que se desenrolam em meio à violência ao redor. Os Tigres Não Têm Medo consiste em uma história de ninar trágica e muito real, sobre mulheres assassinadas e crianças que buscam na fantasia uma forma de diminuir o impacto de tantos eventos traumáticos. Uma dose de empatia e beleza poupa o espectador de uma verdadeira surra submissiva, nesta espécie de conto dos irmãos Grimm completamente imprevisível, onde a tristeza e a coragem se tornam um.

A união de Estrella e Shine (e os outros garotos da gangue), que tentam fugir dos horrendos tentáculos do cartel, ilustra uma triste realidade, a de que no México, crianças são colocadas nesta situação diariamente. As histórias dos meninos que acompanham os protagonistas, como a do pequeno Morro (Nery Arredondo), de apenas 4 anos e que ficou mudo depois de assistir ao massacre de seus pais pelas mãos do cartel, é apenas uma das histórias de partir o coração que o filme apresenta. As crianças vivem a dura realidade de um jogo de gato e rato, onde prédios abandonados se tornam casas, o roubo é uma necessidade, e a morte pode chegar a qualquer momento.

Os jovens Paola Lara e Juan Ramón López mostram uma maturidade que vai muito além de suas idades, nos papéis de “líderes” e guerreiros do campo de batalha que se transformam as ruas. Os garotos do grupo lutam para se adaptar à chegada de uma figura feminina em seu meio, o que ameaça a dinâmica do grupo, assim como Estrella precisa se adaptar ao sofrido modo de vida dos garotos, que não têm sequer um teto para chamar de seu. Já a performance de Nery Arredondo (que interpreta o pequeno Morro), um garoto de cabelo enrolado e que passa o filme abraçando um tigre de pelúcia como forma de conforto, captura tanto a agonia quanto a curiosidade dos medos da infância, e sempre que está em cena, o menino arrebenta com o coração do público.

Veja Também  Crítica: Entre Realidades (Horse Girl) | 2020

É no próprio título do filme que López encontra força e significado para seus personagens. A narração constantemente relembra o público de que os tigres são guerreiros que enfrentaram a morte e viveram para contar a história. Os grafites de Shine sobre os predadores felinos saltam aos olhos e ganham vida, engolindo as paredes de tijolos que estão por trás. O tigre se torna um avatar recorrente que representa Estrella, enquanto ela enfrenta a cruel e impiedosa lei do cartel. Como eu disse anteriormente, trata-se realmente de um conto de fadas, e o filme está sempre envolvido com o misticismo. Desde dragões voadores até misteriosas linhas vermelho-sangue que seguem Estrella onde quer que ela vá, López não desperdiça nenhuma de suas ambiciosas ideias.

Os Tigres Não Têm Medo demonstra um tremendo equilíbrio entre a realidade do caos social e a fantasia ao estilo Peter Pan (especialmente no que diz respeito aos garotos perdidos), e que foca sua narrativa em torno do alarmante fenômeno que são os cartéis e seu produto de morte. Trata-se de um filme altamente emocionante, onde atores mirins mostram a confiança de veteranos, e onde sua diretora cria múltiplos níveis de complexidade artística. Provocativo, relevante e passional, o filme está totalmente conectado à fragilidade humana e também às suas fortalezas, e eu assistiria esta produção maravilhosamente macabra um milhão de vezes sabendo que cada reprise valeria a pena. Os Tigres Não Têm Medo é um filme que exige ser visto, ouvido e discutido sempre que possível.

Os Tigres Não Têm Medo não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país através de sistemas de streaming e VOD.

Loading

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Compartilhe esta notícia

Mais postagens