César Romão: Faça mais, com menos

Seria uma noite normal, como qualquer outra, na vida de um jovem onde ele sai para a diversão e depois volta para casa se, na curva da rua dos Trilhos, ele não tivesse dormido ao volante e atravessado a Praça Kennedy “abraçando” uma árvore com seu carro.

Ao ser jogado para o lado de fora do veículo custou a acreditar que sua perna direita estava imóvel e tomou um susto ao ver seu pé direito virado ao contrário…

Levado a um hospital demorou muito tempo para sair… sofreu cirurgias, colocação de pinos, trações, até que ganhou um engessamento de corpo todo que o acompanhou por longos meses…

Em sua estada no hospital, mesmo sob circunstâncias que o impediam de mover-se da cama – com pino atravessando o joelho e tração puxando a perna, ele tentava viver a vida do hospital, afinal era o que lhe restava fazer, além de aceitar o carinho de todos que estiveram ao seu lado.

Ou melhor quase todos, pois nos primeiros dias foi preciso uma placa de “proibida a visita”.

Depois apenas um maior controle no horário, em razão do grande número de pessoas que ali se dirigiam.

E, por fim, pouco tempo depois, os que foram já não voltavam e os que ligaram, já não ligavam e assim o cerco àquela cama era e foi feito apenas pelas poucas pessoas por quem seu coração batia mais forte.

As dores nos ossos da perna direita eram constantemente aliviadas com injeções analgésicas e as picadas das agulhas já não encontravam mais espaço em seu corpo. Para tudo precisava de ajuda e sentia que alguém cheio de vida podia perder facilmente a vida.

Estar naquele hospital era um trágico acontecimento sem soluções aparentes.

Restava-lhe colocar seu destino nas mãos do destino e assim ele o fez.

O quarto andar do hospital era cheio de casos, dos mais diversos que você possa imaginar, e aqueles que podiam se locomover iam visitá-lo.

As principais visitas eram de pacientes em cadeira de rodas que tinham ficado paraplégicos devido a acidentes.

As conversas eram longas e o tempo parecia sobrar.

Ele só percebia que as horas passavam quando, pela janela, via a noite e a manhã chegarem.

Durante todos os meses em que ali permaneceu pôde acompanhar a chegada e a partida de muitas pessoas: algumas entraram pela emergência e saíram pela porta da frente; outras entraram pela porta da frente e saíram para um novo mundo… quem sabe!

Havia nesse andar um jovem chamado Mário, um tipo de líder dos paraplégicos do hospital com sua cadeira de rodas e seu violão – é…  ali ainda se encontrava tempo para cantar.

No começo os outros pacientes não gostavam, mas logo todos queriam que ele tocasse algo.

Numa dessas reuniões de violão, Mário, chegou bem perto deste jovem e disse, baixinho, em seu ouvido:

 –    Sabe companheiro, eu tinha muitos sonhos e agora preciso repensá-los: depois de meu acidente ao ser colocado nesta cadeira tudo vai ter que mudar.  Devo sair daqui a alguns dias e você vai ficar mais um bom tempo resistindo e quero que resista. Vou participar de uma entidade que promove esportes para deficientes, quem sabe eu possa encontrar mais motivos para minha vida além daqueles que não posso mais fazer nem ter.

O jovem lhe respondeu:

 –          Bem Mário, espero que volte para me ver e que nosso tempo junto neste andar não tenha sido apenas conversa de paciente em hospital.

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Alguns meses se passaram desde que Mario partiu…

De repente, a porta se abre e um conjunto de cadeiras de rodas com seus respectivos ocupantes assim como algumas pessoas de muleta entram no quarto do jovem.

–          Surpresa…! exclamaram juntos.

Lá estava o Mário e seus novos companheiros, que apesar do espaço apertado ainda conseguiam algumas acrobacias em seus meios de locomoção.

O jovem chorou e sorriu de alegria ao ver o amigo voltar com outros amigos e mais ainda ao ver que Mário parecia ter superado a situação em que havia se colocado.

–     Ei amigo, disse Mário, trouxe alguns novos companheiros para visitá-lo: este é o ancião da turma, nós o chamamos de Borracha!

–        Por que Borracha? – perguntou o jovem.

–        Não ligue para eles meu jovem, chamam-me assim porque nenhum deles consegue fazer uma cesta no basquete como eu, então dizem que meu braço chega na cesta porque estica… são todos malucos…

Quando a visita terminou Mário e Borracha ficaram a sós ao lado do jovem.

–          Sabe jovem… disse Borracha, Mário me falou de seu desespero de pensar na possibilidade que lhe assombra de não poder mais andar ou voltar a usar a perna direita.

–          É verdade – disse o jovem – quando o dia chega eu me sinto aliviado, pois posso ver pessoas e sentir esperança. Mas quando a noite chama o sono eu entro em pânico, pois vejo-me em meus sonhos sem a perna, apinhado entre outros jovens que correm num campo e  eu sempre para trás, muito atrás de tudo e de todos. Este sonho fica pior a cada noite e me assusta mais a cada dia. Ontem, sonhei que eu mesmo estava amputando minha perna, foi horrível! Mário, você nem imagina, parecia tão real e eu não conseguia acordar…

Borracha ao ver o desespero e sofrimento do jovem ao narrar seus sentimentos segurou-lhe a mão e falou:

–          Não deixe nada disso lhe assustar: tudo isto é um sinal! Um sinal de que você está vivo e ainda luta contra uma realidade que quer se impor em sua vida. Enquanto lutarmos com qualquer que seja a realidade que tenta se impor significa que ainda não a aceitamos e que não queremos vivê-la. Ainda somos rebeldes de nossas próprias causas e você é um rebelde de sua própria causa em não aceitar esta realidade.

–         Mas como Borracha – disse o jovem – não aceitar algo como este momento? Olhe para mim: não posso me mover há meses. Olhe minha perna pendurada nesta cama. Entrei aqui com 80 quilos e hoje estou com 59. Eu tento, mas não consigo nem mais me alimentar, tenho saudades de poder andar e sair… Respiro um pouco de ar fresco quando minha cama é colocada ao lado da janela… Amanhã faço outra cirurgia que ninguém sabe ao certo qual será o resultado…

–          Ei meu jovem, nisso você está certo: nem sempre sabemos o resultado daquilo que fazemos, mas temos que tentar… disse Borracha.

Um silêncio cobriu o quarto e olhares de esperança e desespero ali se cruzaram.

Mário quebra o silêncio com algumas notas no violão que faziam fundo às seguintes palavras de Borracha:

Talvez você não desejasse estar nesta cama e eu não desejasse estar nesta cadeira de rodas, mas estamos e é daqui que devemos partir para onde quisermos, é daqui que tudo começa.

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A vida, com certeza, não nos dá nada grande e nunca dará, a vida nós dá todos os dias pequenas coisas, pequeninas coisas todos os dias: cabe a

 A vida não me deu um grande pai uma grande mãe, coube a mim fazer de meus pais pessoas especiais e amadas.

A vida não me deu uma grande esposa, ela me deu uma pequena esposa, coube a mim fazê-la sentir-se amada, querida, desejada e torná-la, em meu coração, uma grande esposa.

A vida não deu ao meu pai um grande filho, coube a mim tornar-me um grande filho aos olhos dele…

É assim que as coisas são: sempre pequenas, nós é que temos de fazê-las grandes.

A vida não lhe mostra uma solução fácil para seu acidente, cabe a você resistir até encontrá-la.

Saiba, meu jovem, que a vida nunca lhe dará nada de mais,  sempre de menos. Caberá a você, exclusivamente a você, aprender a fazer mais, com menos.

A enfermeira entrou no quarto e terminou a visita pois já era a hora de fazer novos exames e radiografias.

Naquela noite o jovem ainda foi assombrado pelos mesmos sonhos, mais uma noite acordado e então pensou: a vida não me dará belos sonhos, caberá a mim pintá-los em sua beleza na esperança que se tornem realidade…

O jovem aceitou a nova cirurgia e concordou com seu engessamento praticamente de corpo todo numa tentativa de imobilização total das partes afetadas – assim permaneceu por mais alguns meses,  já em sua casa, sendo carregado como uma mala-sem-alça, mas resistiu.

A primeira coisa que pediu quando lhe tiraram todo o gesso é que queria ficar horas embaixo de um chuveiro e assim ele o fez.

Pensou: nunca imaginei que um simples chuveiro pudesse ser tão importante em minha vida e pudesse me dar tanto prazer, esta água parece uma cachoeira e lembrou das palavras de seu companheiro Borracha: A vida não lhe dará nada de mais, sempre de menos, cabe a você a decisão – e naquele momento era isso que ele estava fazendo, transformando um chuveiro elétrico numa cachoeira.

Seu desafio agora era voltar à vida e aprender a andar, submetendo sua perna direita a um processo de regeneração.

Muletas de braço, ajuda das pessoas que habitavam seu coração e logo estava de bengala, mas a perna ainda com muita resistência de responder ao seu esforço.

Um dia cansado e revoltado com as circunstâncias quebrou na porta de sua garagem a bengala e jurou a si mesmo que faria mais, com menos: nunca mais usaria sequer uma bengala, nem que tivesse que se apoiar entre paredes e muros para se locomover e assim o fez, arrastou-se em pé por paredes e muros, muitas vezes numa perna só para chegar onde queria… e chegou!

 Ele aprendeu a lição, nunca deixou de tentar outra vez…

Um dia um repórter perguntou a este jovem:

–          Cesar Romão, qual foi o segredo de sua volta à normalidade física?

Eu respondi:

 –         Desistir quando não se tem chance talvez seja aceitável, mas desistir quando se está vivo é covardia. Eu nunca fui covarde. Aprendi que a vida não nós dá nada de mais, sempre de menos… Cabe a nós fazermos mais com o menos que a vida nos dá. E, se você ainda não aprendeu a sua lição, tente outra vez!

César Romão

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Imagem: dreamstime

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