Crítica: 1917 (2019)

2019 foi um ano extremamente ambicioso no âmbito cinematográfico. Em O Irlandês (cuja crítica também está disponível aqui no Portal do Andreoli), o grande Martin Scorsese contou a história de um capanga da Máfia cuja narrativa se estende por cinco décadas, e fez isso usando apenas um ator por personagem. Ah sim, e a duração do filme é de “somente” três horas e meia. Os irmãos Russo também não pegaram leve, e entregaram seu gigantesco Vingadores: Ultimato, uma verdadeira epopéia do cinema de super-heróis cuja duração também bateu nas três horas. Sem falar no próprio Coringa de Todd Phillips, uma origin story do maior vilão dos quadrinhos ambientada nos anos oitenta e com um fundo altamente dramático para o gênero. Podemos citar também Quentin Tarantino e seu épico setentista Era Uma Vez em Hollywood, que ressuscita Sharon Tate e cuja duração,  adivinhem, também beliscou os 180 minutos.

Agora chega aos cinemas este 1917 (UK, EUA, 2019), épico do diretor Sam Mendes (Beleza Americana, 007: Operação Skyfall), ambientado na Primeira Guerra Mundial. Comparado aos filmes citados acima (com exceção de Coringa), 1917 é até bastante conciso em sua duração de 120 minutos, entretanto, seu escopo não é menos grandioso. Em profundidade emocional, inovação técnica e um visual simplesmente espetacular, 1917 já nasce um clássico moderno do cinema de guerra, e se configura sem dúvida nenhuma como um dos melhores filmes do ano.

A história de dois soldados britânicos (interpretados por George MacKay e Dean-Charles Chapman), em uma traiçoeira missão atrás das linhas inimigas em território francês, ganha um poder descomunal sob as lentes do genial cinegrafista Roger Deakins (Blade Runner 2049, Sicário: Terra de Ninguém), e através da edição sobrenatural à cargo de Lee Smith (Dunkirk, Batman: O Cavaleiro das Trevas). Tal força absurda nestes dois quesitos do filme tem uma explicação: o filme de Mendes é ele todo um só plano-sequência. Antes que os sabe-tudo comecem a levantar as mãos argumentando, sim, filmes de fotografia e edição contínua já foram feitos antes, o mais notável deles sem dúvida é o aclamado Birdman, dirigido por Alejandro González Iñárritu em 2014. Porém, uma coisa é Michael Keaton gritando impropérios para uma crítica em um bar, outra completamente diferente é capturar os horrores do imenso campo de batalha sob o prisma de uma narrativa sem cortes. Digo de cadeira: O resultado é inacreditável.

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É impossível não reagir com espanto à corrida pela sobrevivência dos dois bravos soldados, que enfrentam as trincheiras atulhadas de homens de ambos os lados do conflito, passando por verdadeiros campos de soldados mortos a perder de vista em uma letal terra de ninguém. Num dos momentos mais inacreditáveis da produção, os protagonistas quase são atingidos por um avião que despenca do ar numa construção de cena impecável, que desafia as leis do que foi visto no cinema até hoje. Fica mais ou menos aquela sensação de quando um mágico performa um ato completamente inexplicável, que fascina e atordoa a plateia à ponto de fazer vários integrantes do público questionarem “Como diabos eles fizeram isso?” Mas ainda há muito mais em 1917 do que Mendes, Deakins e companhia mostrando seu infindável talento. Ainda que a produção comece com brutal grandiosidade, aos poucos o filme se transforma em uma jornada muito mais íntima e não menos pungente.

Schofield (MacKay), é um soldado encarregado de, ao lado de seu amigo, Blake (Dean-Charles Chapman, de O Rei), entregar uma importantíssima mensagem para uma distante divisão do exército britânico, que está caminhando rumo à uma emboscada preparada pelos alemães e que pode ceifar milhares de vidas. O General que os entrega a missão praticamente suicida é interpretado pelo vencedor do Oscar Colin Firth (O Discurso do Rei), o primeiro de vários atores britânicos famosos que, apesar de entregarem excelentes performances, são engolidos por MacKay e Chapman, absolutamente impecáveis em seus papéis. Outros destes nomes incluem Andrew Scott (da série His Dark Materials: Fronteiras do Universo), Richard Madden (Rocketman), Mark Strong (Shazam!) e o Doutor Estranho da Marvel Benedict Cumberbatch.

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Quando Schofield encontra um cantor folk fazendo uma serenata para um grupo de soldados que aparentam ter abandonado a esperança há muito tempo, ao som da bela canção “Wayfaring Stranger,” ou quando ele dá toda sua comida para um cuidador de um bebê francês órfão de guerra, fica no ar a dúvida de porquê não vimos mais deste sensacional jovem ator. E se tais momentos não forem suficientes para o emocionar como espectador, a determinação do personagem nos explosivos momentos finais com certeza serão. Estas sequências que estou descrevendo são em sua maioria destituídas de diálogos, mas ao seguirmos Schofield e Blake incessantemente do Ponto A ao Ponto B, embarcamos em uma jornada notável e fazemos parte de uma experiência rica e repleta de texturas.

A maior parte do crédito pelo resultado excepcional deste 1917 vai mesmo para seu diretor Sam Mendes, por equilibrar com extrema competência a parte técnica de seu filme com a direção primorosa de seu elenco. O diretor tem tido grande sucesso em suas recentes incursões pelo mundo do teatro, com peças aclamadas pela crítica especializada como “The Ferryman” e “The Lehman Trilogy,” mas seus filmes desde Estrada Para Perdição deixaram um pouco (bem pouco) de espaço a ser explorado. Entretanto, 1917 é um exemplo perfeito do ofício cinematográfico, que merece e deve ser visto na melhor sala de cinema da sua cidade. Aliás, creio que nem mesmo a melhor dentre as melhores salas de cinema será capaz de fazer justiça ao feito absolutamente fenomenal realizado por Mendes.

1917 estreia nos cinemas brasileiros no dia 20 de fevereiro de 2020.

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