Crítica: A Assistente (The Assistant) | 2019

Antes de falar efetivamente sobre este A Assistente (The Assistant, EUA, 2019), é preciso falar brevemente sobre Harvey Weinstein. Para quem não o conhece, Weinstein é (ou era) um renomado produtor de cinema, fundador da produtora Miramax, que entre os vários títulos de seu portfólio, apresenta filmes como Pulp Fiction: Tempo de Violência, O Paciente Inglês e Cold Mountain, entre tantos outros. Em 2017, Weinstein foi acusado de abuso sexual por mais de 80 mulheres, muitas delas suas funcionárias diretas. Tais acusações deram início ao #MeToo, movimento criado nas redes sociais onde mulheres de todo o mundo vieram a público denunciar a conduta imprópria de diversos homens poderosos. Para se ter uma ideia, o movimento também foi apelidado de “O Efeito Weinstein”. Nem preciso mencionar que a carreira do produtor na meca do cinema foi completamente soterrada.

Weinstein não aparece em A Assistente e ninguém menciona seu nome, mas não se engane: O urgente thriller em tempo-real da diretora Kitty Green (do documentário Quem é JonBenet), marca a primeira descrição narrativa de como é a vida sob o martírio do assédio. A excelente Julia Garner (um dos destaques da sensacional série Ozark, da Netflix), é uma verdadeira revelação no papel de uma jovem e frágil mulher incumbida de equilibrar todas as minutas da vida do executivo em questão, como reservar uma infinidade de passagens de avião, se livrar de telefonemas mal-educados e recolher o lixo quando ele sai do escritório. Antes fosse só isso.

Além de alguns breves relances fora de foco de uma figura ameaçadora que ronda o escritório ao fundo, o Harvey Weinstein de A Assistente é uma ameaça fantasma que corrói a vida da jovem assistente. Porém, esta fascinante investigação psicológica não permite que esta ameaça roube o filme das mãos da personagem principal. A produção não documenta as especificidades dos abusos de Weinstein contados e recontados inúmeras vezes ao longo dos últimos dois anos; ao invés disso, o filme explora o assédio constante e o controle abusivo perpetrado pela figura sombria que emula o ex-produtor. E os efeitos devastadores de tal opressão sobre a protagonista.

O primeiro longa de ficção de Green acompanha seu inovador documentário citado, onde a diretora aborda a história envolvendo um assassinato não-resolvido, e de certa forma, A Assistente parece uma extensão natural de seu trabalho no documentário, construído através de uma imaculada pesquisa de como eram as condições de trabalho sob a figura de Weinstein, e como tais condições afetavam as mulheres em sua folha de pagamento. O filme se desenrola como uma acumulação gradual de intrincados detalhes que mapeiam a exaustiva rotina da personagem central, até que tal rotina se torne sua própria realidade paralela. A Assistente adota um ritmo gradual que às vezes parece funcionar contra a sensacional performance de Garner, mas não há dúvida de que a força hipnótica de um filme que esmiuça o reino angustiante de Weinstein e observa as mecânicas que permitiram que tal horror existisse por tanto tempo, é extremamente poderosa.

No papel de Jane, Garner entrega uma verdadeira aula de gestos pequenos e incertos. Sua personagem abandona seus sonhos à medida em que ela entra de cabeça em um interminável ciclo de trabalho que a faz acordar antes do sol nascer para chegar cedo ao escritório, e assim começar com as atividades que incluem organizar o local, responder dezenas de e-mails, imprimir uma infinidade de planilhas e por aí vai; ao longo do dia, as salas e corredores da empresa vão ganhando vida ao redor dela. Green constrói a atmosfera com com um genial foco nos fragmentos de conversas de escritório, o dedilhar de teclados e telefones que destacam a triste natureza do trabalho de Jane: Ela está completamente no centro da ação e ao mesmo tempo inteiramente removida dela. E isso inclui as atividades de seu chefe invisível, que parece notá-la apenas quando ela comete algum erro; “Me disseram que você era inteligente”, ela escuta em um dos telefonemas de seu patrão.

À medida em que o martírio físico do trabalho de Jane se acumula, ela começa a perceber evidências dos piores crimes de seu chefe. A descoberta de um brinco no local desperta o interesse de Jane, assim como um breve comentário de um dos funcionários do escritório, que diz que ninguém deveria sequer sentar no sofá do local. Green toma a brilhante decisão de deixar o público juntar as peças, e com o tempo, torna-se bem claro que Jane não tem outro recurso a não ser lidar com as circunstâncias que mais tarde se tornariam uma grotesca questão de conhecimento público.

Por um tempo, A Assistente deixa a impressão de que poderia apenas pairar sobre as agruras de Jane e nada mais. Entretanto, o filme injeta um repentino plot twist quando ela é incumbida de levar uma nova assistente (Kristine Froseth, de Apóstolo, cuja crítica está disponível aqui no Portal do Andreoli), para o seu próprio quarto de hotel. Jane fica intrigada com quais seriam as reais intenções de seu chefe com a jovem assistente, o que a instiga a visitar o departamento de RH da empresa, numa decisão que alça o filme a um novo patamar de desconforto. Interpretado por Matthew Macfadyen (da série da HBO Succession), o executivo incumbido de menosprezar Jane por sua reclamação, amplia a visão da maneira com que a companhia exercia um controle corrupto sobre suas responsabilidades e como ainda se safava disso. A repercussão que Jane experimenta devido à sua pequena tentativa de tomar alguma providência é devastadora, e termina com um repentino e-mail de seu chefe que lhe dá apenas o encorajamento suficiente para mantê-la na linha.

A Assistente espreme tanta coisa em seus parcos 85 minutos de duração, que o filme sofre um pouco para levar a história adiante em seu terço final. A tensão se dissipa à medida em que o filme chega à sua conclusão, e fica uma sensação duradoura de que a história não faz justiça à sua protagonista, já que muito do que acontecia na companhia é mantido sempre em total mistério pela trama. É difícil não imaginar o que Green, cujo trabalho anterior usou os artifícios de reconstituições e narração para mergulhar seu público em eventos reais, teria realizado se tivesse combinado estas cenas com relatos reais das vítimas de Weinstein.

Por outro lado, A Assistente não precisa exagerar na natureza do dilema de Jane. O filme é melhor apreciado como uma narrativa experimental sobre opressão no ambiente de trabalho, além de ser uma fascinante ilustração de como os piores abusos podem permanecer escondidos mesmo daqueles que estão mais próximos da cova dos leões. A intenção de Green nunca foi criar a reconstituição definitiva das atrocidades cometidas por Weinstein, seus muitos anos de abusos sexuais e as consequentes acobertadas por parte de sua empresa como um todo. Ao invés disso, o filme se apoia em momentos silenciosos em que alguma tomada de decisão simplesmente não parece factível. A ausência de uma recompensa apenas aumenta a sensação de desconforto que o filme deixa, e alimenta o drama com um propósito.

Em meio a tantas histórias superficiais sobre o que foi preciso para que as vítimas pudessem finalmente falar sobre Harvey Weinstein e cia, A Assistente é um lembrete essencial do porquê demorou tanto para que o mundo ouvisse sobre isso. Um trabalho silencioso mas de grande ambição, A Assistente é uma significante declaração cultural em forma de cinema, sobre um caso de natureza pérfida e absurda.

A Assistente não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país diretamente através de sistemas de streaming e VOD.

3 respostas

  1. Ótima resenha, parabéns pelo seu trabalho. Informativo e entretenedor. Deixa o leitor com bastante vontade de ver o filme. Muito obrigado!

    1. Eu que agradeço pela visita, pelos comentários e pela confiança, André! Fico feliz que meu trabalho tenha este retorno.
      Volte sempre ao Portal do Andreoli!
      Grande abraço!

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