Crítica: A Casa que Jack Construiu (The House That Jack Built) | 2018

The House That Jack Built

Poucos cineastas possuem um portfólio de obras tão polêmico quanto o diretor dinamarquês Lars Von Trier. Na ativa desde meados da década de oitenta, o cineasta foi um dos idealizadores do projeto Dogma 95, movimento do cinema dinamarquês que pregava a arte da filmagem tradicionalmente crua, privada dos adventos tecnológicos que na época e hoje praticamente dominam o cinema. Trier acumula polêmica atrás de polêmica, ostentando uma filmografia tão mesmerizante quanto perturbadora.

Desde seus filmes do citado movimento Dogma, passando pela dramaticidade à flor da pele de seus dramas Ondas do Destino (Breaking the Waves, 1996) e Dançando no Escuro (Dancer in the Dark, 2000), pelo experimentalismo de seus Dogville (2003) e Manderlay (2005), até chegar ao explícito com suas pedradas O Anticristo (Antichrist, 2009) e Ninfomaníaca Volumes 1 e 2 (Nymphomaniac, 2013), seu último trabalho até então, Trier construiu um legado cinematográfico impetuoso e ousado, que sempre desafia as convenções do politicamente correto e da própria condição humana. A face mais sombria dela, diga-se de passagem.

Sua nova empreitada, como não poderia deixar de ser, não é nenhum passeio no parque. E Trier coloca mais uma vez em ação sua mão pesada e seu furor perturbador neste A Casa que Jack Construiu (The House That Jack Built, DIN/FRA/ALE/SUE, 2018), filme que marcou o retorno do diretor ao Festival de Cannes sete anos depois de seus infames comentários de teor “Nazista” durante a coletiva de imprensa de seu drama apocalíptico Melancolia (Melancholia), em 2011, que rendeu a Trier o rótulo de “persona non grata” e sua posterior expulsão do festival, do qual estava banido até a edição deste ano.

Ambientado nos turbulentos anos setenta, A Casa que Jack Construiu segue a trajetória do sinistro e altamente inteligente personagem-título (Matt Dillon, assustadoramente impecável), que em um espaço de doze anos envolve-se em uma rotina de assassinatos, até se tornar um legítimo serial killer. Contada sob o ponto de vista do protagonista, a produção mostra como Jack acredita que seus crimes hediondos são na verdade obras-primas, e à medida em que uma inevitável intervenção policial se aproxima, ele se arrisca cada vez mais em sua tentativa de criar sua obra-prima definitiva.

Curiosamente, A Casa que Jack Construiu foi originalmente anunciado como uma minissérie de oito episódios, isso em setembro de 2014. O mesmo período em que a versão completa de Ninfomaníaca estreava no Festival de Veneza. Entretanto, em fevereiro de 2016, Trier anunciou através de um vídeo em sua página oficial do Facebook que a história seria na verdade adaptada como seu próximo longa-metragem, com estreia programada para 2018. Outra curiosidade, é que A Casa que Jack Construiu referencia o filme de estreia de Trier, Elemento de Um Crime (The Element of Crime, 1984). Na cena em que a protagonista, Kim (Me Me Lai), aparece pela primeira vez, ela está recitando a famosa rima “The House That Jack Built”, que dá nome ao filme. Assim como aqui, Elemento de um Crime também gira em torno de um serial killer.

Ao longo de A Casa que Jack Construiu, o público vivencia as detalhadas e aterrorizantes descrições do protagonista relativas à seus crimes, e também à sua condição pessoal, problemas e pensamentos, que englobam diferentes aspectos da doentia personalidade de Jack, numa grotesca mistura de sofisticação e auto-piedade quase que infantil, além das já esperadas pitadas de psicopatia. Assim como geralmente acontece na filmografia de seu diretor, A Casa que Jack Construiu consiste em uma história sombria e sinistra, mas apresentada através de um viés filosófico e ocasionalmente humorístico.

Trier (talvez numa maneira de tentar justificar os extremos em sua filmografia), transmite a ideia de que qualquer coisa que um artista seja capaz de pensar, não importa o quão podre ou moralmente ofensivo isso seja, na verdade já teria sido pensado por alguém antes, e pior, já teria sido colocado em prática no mundo real. “Você mata a arte quando impõe suas regras morais à ela!”, profere Jack em um dado momento para seu interlocutor, Verge (o ótimo Bruno Ganz, de A Queda! As últimas Horas de Hitler, 2004), que devolve para Jack que “A arte é muito mais vasta do que o indivíduo jamais conseguirá conceber.” Sem dúvida. Mas A Casa que Jack Construiu não é. Na realidade, trata-se de duas horas e meia de tortura tão explícita que chega a ser pornográfica, com um punhado de ideias genuinamente provocativas, mas que não são desenvolvidas como deveriam.

O filme é em essência um (auto) retrato do artista visto como serial killer, e é estruturado em torno de cinco “incidentes” retirados da carreira assassina de Jack, cada um progressivamente mais difícil de assistir do que o anterior. Um deles, que envolve a profanação do cadáver de uma criança, é particularmente repugnante, e deve ter sido a cena responsável por afastar boa parte da plateia de sua estreia em Cannes. Com mais de duas horas e meia de duração, o filme soa penosamente longo, e contém um excesso absurdo de diálogos que em dado momento irritam profundamente. Por exemplo, enquanto Verge escuta Jack recontar a história de sua vida, os dois discorrem sobre assuntos tão variados quanto arquitetura, engenharia, poesia e música, entre outros temas que Jack acredita estarem ligados à verdadeira e demoníaca faceta da humanidade. Interessante, mas enfadonho.

Há entretanto, belíssimos aspectos em torno do filme. Especialmente as honestas passagens confessionais onde Jack discorre sobre sua infância, e onde suas palavras carregam a sombria e proibida intimidade de uma carta deixada por um suicida. Há também um prolongado epílogo chamado de Katabasis – o termo grego para “descida” – que apresenta uma série de imagens expressionistas e infernais que por si só já vale o ingresso. E é claro, não poderia deixar de destacar a impressionante presença de Matt Dillon, frio, magnético e engraçado neste que é, sem dúvida nenhuma, o papel mais desafiador de sua carreira, e agora também sua melhor atuação. A bela Riley Keough (de Docinho da América e Ao Cair da Noite, cujas críticas você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), também se sai bem, no triste papel de Francesca, a “às vezes” namorada de Jack, a quem ele trata com cruel desprezo. Sua personagem é a que chega mais perto de ser uma heroína do filme.

Mesmo nos caóticos dias em que vivemos hoje, onde parece que já vimos de tudo, os choques de A Casa que Jack Construiu são capazes de invocar pesadelos diabolicamente gráficos na cabeça do incauto espectador, uma vez que o filme termina. Esta talvez seja a grande marca do cinema de Trier; elaborar imagens inseridas em temas que perduram na cabeça do público, para o bem e para o mal. Mas, assim como acontece em boa parte de sua filmografia, principalmente dos anos 2000 em diante, A Casa que Jack Construiu também parece exagerar demais para chegar à lugar nenhum.

A Casa que Jack Construiu estreia nos cinemas brasileiros no dia 08 de novembro de 2018.

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