Crítica: American Animals (2018)

Eu sempre adorei o subgênero do crime no cinema. Aliás, é bem possível que o gênero me tenha trazido as melhores experiências cinematográficas da minha vida, afinal, Martin Scorsese, Quentin Tarantino e Guy Ritchie são apenas alguns dos especialistas do gênero. O que falar então do clássico O Poderoso Chefão, do mestre Francis Ford Coppola? Quer mais cinema criminal do que isso? No entanto, o crime no cinema tem mostrado claro sinais de exaustão, e tem sido cada vez mais difícil encontrar exemplares significativos da vertente.

O que, felizmente, não pode ser dito deste excelente American Animals (UK/EUA, 2018), produção exibida e ovacionada no Festival de Sundance deste ano, e escrita e dirigida pelo ascendente Bart Layton (O Impostor, 2012). Layton transforma um típico filme de roubo em algo novo e extremamente original, embalado em uma execução genuinamente divertida e competente. Não estou exagerando aqui quando digo que American Animals é possivelmente o Caçadores de Emoção ou o Clube da Luta de sua geração. Um filme que veio para sacudir o gênero e impactar o espectador.

A impecável execução é o que dá o tom aqui, desde a intrincada junção de fato/ficção no roteiro, passando pelas atuações, iluminação, design de produção e principalmente a edição. Layton e seu diretor de fotografia, Ole Bratt Birkeland (do terror britânico Ghost Stories, cuja crítica você também encontra aqui no Portal do Andreoli), enquadram um mundo simultaneamente sedutor e inquietante, onde quatro estudantes utilizam o interior de uma biblioteca de uma universidade do Kentucky para planejar um roubo em 2004. Começando como uma fantasia ficcional ou um drama original, o filme se transforma em algo que ultrapassa os limites do convencional e parte em direção à uma realidade onde ninguém sabe o que o aguarda do outro lado.

Layton trabalha em múltiplos níveis em seu American Animals; nós temos o testemunho nos dias atuais dos verdadeiros personagens do tal roubo, que fornecem um contraponto para a trama que se desenrola em 2004, e que é repetida diversas vezes sob as diferentes perspectivas dos envolvidos. Os atores Evan Peters (o Mercúrio da saga X-Men), e Barry Keoghan (do forte drama O Sacrifício do Cervo Sagrado, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), formam uma explosiva combinação como os dois “cabeças” do roubo, enquanto que os verdadeiros ladrões nos quais seus personagens são baseados, Warren e Spencer, fornecem comentários e relembram alguns detalhes do ocorrido há 14 anos atrás.

Warren é o típico college boy americano, sedento por garotas e aventura. Já Spencer é um estudante de artes desanimado com a falta de substancialidade em sua vida. Ambos cresceram ouvindo que eram especiais, mas quando chegaram no ponto em que estão, descobriram que como a maioria de nós, eles não são. É precisamente aí que a dupla decide entrar para o mundo do crime, e é sempre interessante assistir aos verdadeiros Spencer e Warren “interagirem” com sua versões cinematográficas quando a pauta é a transição de ambos de estudantes comuns para ladrões. Ambos os atores estão carismáticos em seus papéis, com um Keoghan mais intuitivo e um Peters frequentemente explosivo. É nítido como ambos capturam a essência dos verdadeiros Warren e Spencer.

Outra grande sacada do filme vem na forma do alvo do roubo: os requintados e valiosos livros que estão guardados dentro de uma sala especial na própria biblioteca da universidade, vigiados por BJ (a excelente Ann Dowd, de Hereditary, cuja crítica você também encontra aqui no Portal do Andreoli), uma arquivista de meia-idade que não está para brincadeira. Spencer e Warren querem roubar o clássico “As Aves da América”, do autor John James Audubon, e uma cópia rara de “A Origem das Espécies”, do naturalista britânico Charles Darwin. É muito bacana a maneira com que os elementos visuais do livro se integram com o design de produção do filme, cujo título deriva de um trecho do livro de Darwin.

Layton entrelaça imagens de documentários (que consistem somente de entrevistas), com alguns aspectos da história que rendem bons momentos na encenação do ato ilícito, como por exemplo o fato dos garotos planejarem seu crime assistindo filmes sobre roubos, e pelo fato de chamarem um ao outro de Mr. Black, Mr. Pink, etc… numa clara alusão (homenagem) ao neo-clássico Cães de Aluguel, de Quentin Tarantino. Este meta-aspecto dá ao filme uma atmosfera esperta e vibrante, ao estilo multi-perspectivo do clássico Rashomon, do mestre Akira Kurosawa. À medida em que os rapazes se aprofundam no plano, eles agregam mais dois integrantes ao time; Eric (Jared Abrahamson, de Sweet Virginia, cuja crítica você também encontra aqui no Portal do Andreoli), que anda entediado com seu curso de contabilidade, enquanto que Chas (Blake Jenner, de Quase 18), é puramente motivado pelo dinheiro.

Layton utiliza seu histórico como documentarista para dar a si mesmo um acesso à ficção, e ele cruza sua própria linha traçada ao reverter o eixo fato/drama de seu experimental vencedor do Bafta, O Impostor, em um eixo drama/fato que nunca perde a direção em seu American Animals. Um filme que demanda muitos cortes e perspectivas, o que é novidade para alguém acostumado a conduzir documentários, contudo, Layton nunca deixa o ritmo cair e ainda por cima consegue costurar este aspecto da produção à sua parcela dramática sem nenhum tipo de solavanco. É raro ver um filme que genuinamente rompe barreiras e inova o tempo todo. Com seu American Animals, Layton mostra que o cinema de crime ainda tem muita lenha para queimar e novidades para oferecer. Ele nem imagina o quanto sou grato por isso.

American Animals ainda não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país diretamente através de sistemas de streaming e VOD.

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