Crítica: Les Affamés (The Ravenous)

Nas últimas semanas, tenho falado bastante sobre o cinema francês aqui no Portal do Andreoli. Mais precisamente sobre o movimento New French Extremity, em minhas críticas dos filmes Vingança (Revenge) e A Invasora (Inside), este na verdade um remake americano de uma produção francesa. Para quem nunca ouviu falar, o New French Extremity consiste em um movimento do novo cinema francês, cujos títulos são repletos de violência explícita (e uma boa carga de violência sexual explícita também), e que carregam consigo uma natureza transgressora.

Hoje eu volto mais uma vez a falar de um novo exemplar do cinema francês, mas desta vez, nada dos extremos do cinema da terra da Marselhesa. O produto de minha crítica de hoje é o dramático horror Les Affamés (FRA/CAN, 2017), também batizado de The Ravenous em festivais ao redor do mundo, filme que foge dos excessos do New French Extremity, mas que carrega um punch tão duro e profundo quanto os filmes que evidenciam a violência de maneira explícita. Les Affamés é um dos melhores exemplares do cinema francês em muitos anos.

Escrito e dirigido pelo ainda desconhecido (não por muito tempo) Robin Aubert, que também é ator, Les Affamés é um filme permeado pelo silêncio. Na verdade, parece até que três terços do filme são preenchidos por um opressor silêncio. Tal concepção por parte de Aubert, permite que Les Affamés seja um horror para ser apreciado como um drama sério e relevante. Com cada frame maravilhosamente fotografado, o espectador é imerso na produção à ponto de o silêncio mencionado anteriormente se tornar praticamente um personagem do filme. Quando tal silêncio é quebrado, o espectador encontra-se como um passageiro que ao lado dos protagonistas do filme, procura por um porto seguro em um mundo que subitamente se transformou em um pesadelo muito real.

O pano de fundo da produção sugere uma epidemia viral que faz com que as vítimas se transformem em canibais famintos (ou zumbis, se preferirem, ainda que o termo não se encaixe exatamente aqui). Estas pessoas transformadas desenvolveram também uma apurada percepção para o som, o que explica a necessidade do silêncio que mencionei acima. Uma vez que a presa é ouvida ou vista, os infectados se comunicam através de ruídos agudos e nem um pouco humanos, e é claro, uma vez que a vítima é mordida, eventualmente se junta aos infectados. O público começa a acompanhar o apocalipse algum tempo após o mesmo ter começado. Dias? Semanas? Meses? O espectador nunca recebe esta informação, e tampouco isso importa. A única coisa que realmente importa é o aqui e o agora, e as únicas pessoas que importam são aquelas que o espectador passa a acompanhar, e cujo único objetivo é impedir que passem a fazer parte das massas infectadas que vagam pelo planeta.

Cada personagem da trama parece carregar uma espécie de lembrete constante de sua humanidade e individualidade, algo que o impede de escorregar para a selvageria inerente do fim dos tempos. Um deles conta piadas enquanto outro protege um acordeão. Um pote de picles é o ítem de um outro, ao mesmo tempo em que uma das personagens se agarra ao seu ódio e sua culpa assim como à um machado. Quase como que debochando dos sobreviventes, muitos dos infectados também são vistos carregando ítens similares enquanto vagam em seus grupos silenciosos, quase como se estivessem ouvindo uma voz fora do range de audição dos protagonistas.

Se estes comentários dão a impressão de que Les Affamés não é o seu “filme de zumbi” comum, então estou acertando no texto. O filme não tem nada daquela correria desenfreada de outras produções do gênero, contudo, também traz algumas sequências de acelerar o coração do espectador. Les Affamés está longe de ser um filme sanguinolento, ainda assim é bastante violento e contém uma boa dose de gore. Também está bem longe de ser uma comédia, mas carrega consigo um humor honesto que não enfraquece o conjunto da produção. Pelo contrário, o enriquece, ajudando a produção a evitar boa parte dos clichês do gênero.

Les Affamés consegue fazer algo que parecia improvável; transformar um filme de zumbi padrão em algo semelhante à um horror arthouse, sem sacrificar a conexão pessoal que os filmes de terror necessitam. Qualquer tentativa de catalogar cenas ou explicar certas passagens seria insultar a força do filme, que se apoia não só no poder de sua concepção, como no talento de seu elenco, todos com performance incríveis. Ninguém se destaca mais do que o outro, e mesmo a jovem atriz cuja personagem se junta ao grupo de sobreviventes em fuga, entrega mais profundidade à sua interpretação do que muitos atores adultos por aí que ganham cem vezes o seu salário. O trabalho de câmera é exemplar e provoca um efeito ambíguo, permeando o irreal, e repleto de potencial para o horror. A câmera passeia por cenários como fazendas, matas densas e campos abertos, sem nunca perder o impacto de seus acontecimentos.

Como deu para perceber no texto, estou mesmo rasgando elogios à este Les Affamés. É facilmente um dos filmes de horror mais impressionantes que tive a oportunidade de ver em anos, e um filme que merece ser visto por qualquer um que ama o cinema e não só o de horror. Chamá-lo de um clássico em potencial tão cedo pode até soar precipitado, mas este belo e silencioso filme tem as qualidades para se tornar um.

Les Affamés (The Ravenous) ainda não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país diretamente através de serviços de streaming e VOD.

3 respostas

  1. impecável a análise !!! baixei essa semana esse e fui pesquisar, sua crítica estava 1 primeiro nas pesquisas …. grande abç mestrão …

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