Crítica: Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight)

Os dramas cinematográficos sempre abordaram com fascínio as questões de identidade do indivíduo. Contudo, raramente um exemplar do gênero consegue explorar esta vertente com o grau de eloquência e beleza de partir o coração quanto este maravilhoso Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, EUA, 2016), um dos filmes americanos essenciais de 2016. Moonlight é um filme lírico, mas também é profundamente enraizado no trabalho de seus personagens, mantendo a narrativa em total equilíbrio, em um belíssimo exercício de contemplação. É também uma das raras produções que se mantém completamente focadas em seus personagens, ao mesmo tempo em que lida com temas universais como identidade, sexualidade, família, e, principalmente, masculinidade. Tais temas profundos e complexos refletem-se nos personagens, e em nenhum momento, a produção se preocupa em pregar qualquer tipo de lição de moral. O filme do diretor Barry Jenkins é impecável, de narrativa sólida e confiante, onde cada performance, cada tomada, cada trecho de música, e cada cenário, completam um mosaico cinematográfico em que a narrativa não sofre um tropeço sequer, e cujo clímax não depende de CGI ou plot twists, mas sim de um diálogo, que faz parte de uma das melhores e mais profundas sequências que vi no cinema em anos.

O protagonista de Moonlight reflete a conflituosa masculinidade dos jovens afro-americanos nos Estados Unidos de hoje, e o filme é dividido em três capítulos – “Little”, “Chiron” e “Black” – três apelidos utilizados para referenciar a mesma pessoa, o protagonista, o qual seguimos da infância, passando pela adolescência, e chegando à idade adulta. Ele é um garoto e então um homem, que tem dificuldades em descobrir seu lugar no mundo, num efeito narrativo que funciona à perfeição, principalmente pelo fato de que o personagem é interpretado por três intérpretes distintos e realmente admiráveis.

597740681

O filme começa com Chiron ainda garoto (Alex R. Hibbert), batizado por seus “bullies” como “Little” (algo como “pequenino” em português). Chiron é apresentado ao público correndo, tentando se esconder em um apartamento abandonado para não apanhar dos outros garotos. Lá, Little é encontrado por Juan (Mahershala Ali, da série Luke Cage, aqui no melhor papel de sua carreira), um traficante local. Juan leva o garoto para comer algo, inclusive levando-o à sua casa, onde ele conhece sua parceira, Teresa (a também cantora Janelle Monáe). Little poderia até aproveitar esta família de faz-de-conta. Seu pai já se foi, e sua mãe, Paula (a ótima Naomie Harris, de Uma Lição de Vida), é uma das melhores clientes de Juan. O traficante acaba por se tornar uma espécie de figura paterna para Little, e ao perceber algo de bom em Chiron, ele decide ajudar o menino, mesmo ele sendo o responsável pela venda do produto que destruiu a família do jovem rapaz.

O filme então salta para Chiron já um adolescente, lidando com um bullying ainda mais intenso e também com seus questionamentos sobre sexualidade. Estes são aqueles típicos anos onde todo mundo diz que está transando por aí, enquanto que Chiron (agora interpretado por Ashton Sanders), luta para encontrar a si mesmo, especialmente agora que qualquer coisa semelhante à uma vida caseira normal não existe mais. Ele literalmente não tem nada, e a única pessoa que o ajuda de bom grado é seu amigo Kevin (interpretado nesta idade por Jharrel Jerome). Mas mesmo esta situação se altera drasticamente, uma vez que estes jovens passam a acreditar que a violência é a resposta para o que os farão se sentir melhor, ou permitir que se encaixem na sociedade ao redor.

maxresdefault

Finalmente, encontramos Chiron como um jovem adulto, interpretado com notável sutileza por Trevante Rhodes. A relação de Chiron e Kevin (agora interpretado por André Holland, da série The Knick), é vista sob um prisma totalmente diferente, e os temas da produção se aglutinam de maneira surpreendente e emocionante, sem monólogos ou melodrama. De certa forma, Moonlight é uma história sobre o amadurecimento de um garoto por diversas vezes subestimado pela sociedade, aquele menino pequeno que não é legal o suficiente para ser amigo dos garotos maiores, e sem o suporte de uma família que o protegesse de simplesmente desaparecer noite adentro.

O trio de atores que dão vida à Chiron – Hibbert, Sanders e Rhodes – é perfeitamente calibrado por Jenkins, que os dirige não como imitações um do outro, mas de maneira que expressa crescimento. Nós podemos ver os olhos tristes de Chiron quando garoto, refletidos em Chiron como um homem. O trabalho de Jenkins com seu elenco cria consistência de capítulo em capítulo, mesmo com as mudanças de elenco a cada salto temporal da narrativa. Jenkins também arranca excelentes atuações de Harris e Ali, que interpretam duas das pessoas mais influentes da vida de Chiron, e o cada vez melhor Mahershala Ali merece cada uma das indicações que recebeu pelo papel ao longo da campanha do filme.

Jenkins e sua equipe técnica filmam Miami de uma maneira que não estamos acostumados a ver, utilizando seu belo cenário de maneira brilhante, especialmente o jeito que a água e a praia ao redor passam a impressão de estar à parte dos problemas do mundo. Mas Moonlight é um filme sobre rostos. Os olhos de Chiron dizem tudo o que ele sequer ainda foi ensinado a expressar. Ele é jovem, negro, pobre, e sem amigos. É o tipo de pessoa que sente-se como se pudesse literalmente desaparecer sem o mundo notá-lo. Durante um dos muitos diálogos memoráveis do filme (escrito por Jenkins, e adaptado de uma peça de Tarell McCraney), Chiron diz que ele já chorou tanto em sua vida, que ele às vezes pensa que poderia simplesmente se transformar em líquido e escorrer para o oceano.

Enquanto que há diálogos memoráveis em Moonlight: Sob a Luz do Luar, é precisamente o que não é dito, que ressoa com mais força. Está no olhar de uma figura paterna moralmente complexa, quando uma criança o questiona sobre o porquê das outras crianças o xingarem; ou numa encarada nervosa entre dois jovens que sabem que há algo diferente na relação entre os dois, mas cuja sociedade ao redor não fornece as palavras para expressá-lo. E está nas cenas finais do filme – em que Jenkins sabe que as bases de seu filme estão fortalecidas, e que sua confiança em seu elenco permite que as emoções do que não foi dito até então tomem conta – onde Moonlight: Sob a Luz do Luar torna-se extremamente impactante. Jenkins compreende profundamente que são as conexões humanas que nos formam, que mudam nossa trajetória, e nos transformam em quem somos.

Moonlight: Sob a Luz do Luar estreia nos cinemas brasileiros no dia 23 de Fevereiro, e é um dos principais candidatos aos prêmios do Oscar 2017.

6 respostas

  1. Que critica PERFEITA!! A MELHOR que vi na internet sobre este belo e profundo filme. Parabéns ao Luiz Andreoli por escolher o Eduardo Kacic como crítico do site. Poucos conhecem de cinema como este jovem crítico.
    ganharam um fã.

  2. Eu ainda não havia lido nenhum de seus textos e fiquei muito empolgada com o que vi aqui. O cuidado com a escolha das palavras para narrar essa história tão intensa sem expor os detalhes que fazem do filme o que ele é: o melhor.
    Adorei. Vou visitar mais vezes, com certeza.

    1. Olá Gi!
      Agradeço demais pelo elogios e pela visita! Sempre que quiser, volte a nos visitar. Sempre tem críticas novas toda semana.

      Beijos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Compartilhe esta notícia

Mais postagens