Crítica: O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation)

Quando surgiram as primeiras notícias e imagens deste O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, EUA, 2016) no início do ano, a internet convulsionou-se a classificar a produção como imediata “favorita ao Oscar”, principalmente pelo papelão que a tal Academia havia cometido no ano passado, onde deixou de indicar intérpretes negros para suas categorias de Melhor Ator e Atriz. Uma inegável produção negra, O Nascimento de uma Nação parecia talhado para fazer justiça no Oscar 2017.

Contudo, à medida que mais detalhes emergiam sobre o filme, e as primeiras exibições em festivais começaram a acontecer, começou também a pipocar o verdadeiro destino da produção. O Nascimento de uma Nação deixou de ser favorito ao Oscar, para se tornar uma produção extremamente criticada, e ainda pior, acusada de não ser totalmente fiel aos eventos verídicos retratados no filme. A culpa, é claro, recaiu sobre o ainda jovem (37 anos de idade) Nate Parker, um esforçado ator que decidiu estrear na direção com este épico sobre a escravidão. Não contente, além de dirigir, Parker também protagoniza, produz e escreve a obra, repetindo o feito de Mel Gibson e seu Coração Valente (Braveheart, 1995) e Kevin Costner e seu Dança com Lobos (Dances With Wolves, 1990). A diferença é que enquanto Gibson e Costner colheram reconhecimento e Oscars por seus trabalhos, Parker não obteve exatamente uma boa colheita, e deixemos algo bem claro: Não foi pelo fato de ser negro.

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A produção retrata a história verídica ocorrida durante o período da escravidão no início dos anos 1800, no estado da Virginia, em que o escravo Nat Turner (Parker), liderou uma rebelião com outros companheiros de clausura e escravos oriundos de outras plantações. Na sangrenta rebelião, Turner e seus asseclas foram responsáveis pelas mortes de 65 pessoas, entre donos de plantações e seus familiares, o que, em retaliação, causou a morte de aproximadamente 200 indivíduos negros, entre escravos e homens livres. O legado de Turner não consiste exatamente em algo instantâneo à sua insurgência, mas sim aos efeitos a longo prazo de tal rebelião, onde o sangue derramado e a coragem dos homens envolvidos na ação, mostraram que não era necessário apenas um “ato de Deus” para que a escravidão pudesse ser combatida, e consequentemente, abolida.

Deus (ou a religião, se preferirem) inclusive, tem um papel importante nos eventos retratados na produção, já que Nat era uma exceção à regra, digamos assim. Letrado, Nat era um dos poucos negros que sabiam ler, o que possibilitou ao escravo o aprendizado da Bíblia. Aproveitando-se disso, donos de plantações contratavam Nat (através de seu dono, é claro) para que ele pregasse a Palavra para outros escravos, principalmente os mais problemáticos, para assim acalmá-los e prevenir motins e rebeliões nas plantações. Tal tiro acabou saindo pela culatra, pois foi justamente a palavra de Deus que serviu como gatilho para que Nat inflamasse outros escravos e tornasse a insurgência apenas uma questão de tempo.

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Apesar do ótimo material que tinha em mãos para trabalhar, fica evidente que Parker mordeu um pedaço maior do que poderia mastigar, quando decidiu conduzir a produção praticamente sozinho, produzindo, dirigindo, escrevendo e atuando, no que seria apenas sua estreia como diretor. O resultado não é ruim, longe disso. Mas é nítida a falta de profundidade da produção, que derrapa em uma direção inconstante, em uma edição apressada, e um roteiro que rebusca demais o já citado Coração Valente, guardadas as devidas proporções, é claro. São fatores que, trabalhados individualmente, poderiam ter resultados bem diferentes, mas, uma vez que Parker decidiu abraçar tudo (ele injetou U$100.000 de seu próprio bolso na produção), ele acabou se afogando, principalmente pelo fato das filmagens terem durado apenas 27 dias.

Parker se sai bem na direção do elenco, entretanto. Sua própria performance é fortíssima, e a sequência em que seu personagem prega de maneira fervorosa para um grupo de escravos pela primeira vez, é sensacional. O elenco de apoio, apesar de discreto, também é sólido, especialmente o melhor amigo do protagonista, Hark, interpretado por Colman Domingo, que interpreta também o melhor personagem da série Fear the Walking Dead. A bela fotografia, à cargo de Elliot Davis (A Dama de Ferro, Irresistível Paixão), é outro ponto forte da produção.

E existe também, o problema da fidelidade da produção aos eventos que retrata. Já é sabido que Hollywood gosta de romancear suas obras baseadas em fatos verídicos, contudo, Parker teria distorcido fatores vitais para os eventos que colocam a narrativa em movimento, como o casamento do protagonista por exemplo, e uma suposta agressão à sua esposa (que no caso não teria existido), que teria desencadeado boa parte dos conflitos internos que fizeram com que Turner partisse para a luta.

Independente de tantas polêmicas, e dos escorregões de Parker como condutor de uma obra de tamanha importância histórica e intrincada concepção, considero bastante válida a experiência cinematográfica que consiste neste O Nascimento de uma Nação. Os valores da história estão todos lá, e é impossível não compactuar com o sofrido protagonista, que luta pela dignidade apoiado em sua solitária fé, e que sonha com a tão idílica liberdade, e o fim de uma opressão desumana. Trata-se de uma obra impactante, apesar dos problemas, e que carrega consigo alguns exemplares momentos (uma das dolorosas sequências finais, ao som da clássica e tristíssima canção “Strange Fruit”, interpretada pela inigualável Billie Holiday, é puro ouro). Quem sabe com um pouco menos de pretensão e pressa, Nate Parker não venha ainda a entregar seu grande trabalho. Isso se Hollywood deixar.

https://www.youtube.com/watch?v=b5ZW8EZfBIY

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