Crítica: O Peso do Passado (Destroyer) | 2018

Em 2016, uma produção discreta e inesperada me tomou de assalto, e se revelou facilmente um dos melhores suspenses daquele ano. O filme era o thriller The Invitation (disponível na Netflix), um admirável esforço da diretora Karyn Kusama, cineasta de produtos díspares em sua filmografia, como o contundente Boa de Briga (Girlfight, 2000), o descartável Garota Infernal (Jennifer’s Body, 2009), e um segmento da decepcionante antologia de horror XX (cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli). A questão é que Kusama volta a acertar a mão com esta verdadeira porrada cinematográfica, que transforma a classuda Nicole Kidman em um verdadeiro poço de ódio em busca de retribuição.

Kidman está no centro de cada frame deste O Peso do Passado (Destroyer, EUA, 2018), e sua personagem torna-se cada vez mais implacável à medida em que a trama transcorre. Ela interpreta Erin Bell, uma detetive de Los Angeles cuja vida encontra-se devastada, e que por consequência, transformou-a em uma mulher transtornada e cujo ódio internalizado a coloca em uma implacável jornada de vingança. A narrativa do filme basicamente toma seu tempo para explicar como Erin ficou assim, mas o explosivo drama de Kusama não precisa de muita história para que as atitudes de Erin tornem-se genuínas. Pela primeira vez desde seu forte drama esportivo Boa de Briga, lançado há quase vinte anos atrás, a cineasta entrega um filme que é impulsionado pela interminável energia de uma mulher que luta para tomar o controle de suas circunstâncias, não importa o preço que venha a pagar.

Nos primeiros momentos do filme, a figura de Erin é de dar pena: extremamente magra, rosto chupado, olhos fundos e vermelhos, ela manca de uma perna enquanto caminha sob o sol do deserto até a cena de um crime. Erin é imprevisível, uma espécie de saco de pancada humano que pode revidar a qualquer momento. Coisa que ela realmente faz, e bastante, ao longo do filme escrito por Phil Hay e Matt Mandredi (do citado The Invitation), que funciona como uma panela de pressão prestes a explodir. Na tal cena de crime, Erin descobre evidências de que um chefão do crime, Silas (Toby Kebbell, de Ouro, cuja crítica está disponível aqui no Portal do Andreoli), está ressurgindo na cena criminal da cidade depois de um bom tempo sem dar as caras por aí. Exatamente o período após seu encontro com a própria Erin, que na época trabalhava disfarçada para o FBI.

Enquanto ela circula por toda a cidade, desde nightclubs até os becos sujos do local à procura do rastro de Silas, uma série de flashbacks exploram a razão dela se importar tanto em localizar o criminoso. Kusama equilibra em sua narrativa os vários fatores que tornaram a vida de Erin tão difícil, o que funciona muito bem para que o público consiga compreender à fundo a raiz de sua obsessão. O filme toma seu tempo em evidenciar os detalhes da causa desta obsessão, o que às vezes faz a produção soar um pouco arrastada ou mesmo sonolenta. Entretanto, sempre que o material ameaça entrar neste estado de torpor, Kidman transforma a cara do filme com sua contínua fúria implacável.

O Peso do Passado mantém um fascinante foco temático. Kusama não dobra as regras do gênero, mas seu filme apresenta uma complexidade estrutural que torna-se cada vez mais clara, e suas duas horas de duração não pesam no produto final. Kidman exala tamanha força e fúria em seu papel, que sua personagem funciona como uma espécie de motor que propulsiona a história adiante. A produção se beneficia da incansável habilidade de sua protagonista em manter o controle da situação, seja em um sangrento tiroteio, ou em um interrogatório onde Erin performa um grotesco favor sexual para seu informante em troca de uma informação rápida. Sim, ela vai até tais extremos.

A fotografia de Julie Kirkwood (do eficiente horror The Blackcoat’s Daughter, 2015), ajuda a criar uma eficiente atmosfera noir para o filme, repleta de tons desérticos e noites sombrias. Nada muito inovador, mas que garante um tom consistente que complementa a incansável odisseia da protagonista. Erin circula por uma dimensão quase que paralela, repleta de estacionamentos vazios e calçadas onde o calor parece fazer o chão ferver e oscilar. A atmosfera deste O Peso do Passado me lembrou muito a de outro thriller dramático, o excelente O Abutre (Nightcrawler), protagonizado por Jake Gyllenhaal em 2014, e que também discute os limites de uma obsessão.

Depois de seu excepcional thriller The Invitation, Kusama volta a entregar mais um confiante exercício de tensão, que evidencia mais uma vez o talento da diretora, cada vez mais segura e estabelecida em seu trabalho. E é claro, não posso deixar de falar sobre Nicole Kidman. A versatilidade da atriz é frequentemente o centro de cada um dos filmes que estrela, e aqui ela mais uma vez explora águas profundas e turbulentas com sua personagem, transformando a si mesma em uma criatura feroz cujo único objetivo funciona como o oxigênio do filme. Cada doloroso detalhe de sua trajetória está expresso em seu rosto, e sua persona habita um paradoxo central que sua personagem deixa evidente quando declara em um certo momento do filme: “Eu não ligo para o que vier a acontecer comigo”. Ao longo deste O Peso do Passado, Erin dá a impressão de que ela já perdeu sua batalha, mas ao mesmo tempo, encontrou uma maneira de triunfar em sua missão.

O Peso do Passado é uma das atrações do Festival do Rio 2018, e o filme estreia nos cinemas brasileiros no dia 31 de Janeiro de 2019.

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