Crítica: Trama Fantasma (Phantom Thread)

De acordo com as palavras do próprio Daniel Day-Lewis, este Trama Fantasma (Phantom Thread, EUA, 2017), é seu último trabalho como ator. O ator, no momento em que escrevo este texto, provavelmente já está aposentado. Como cinéfilo, só me resta lamentar profundamente a decisão deste fenomenal intérprete londrino de 59 anos de idade. Com apenas vinte e dois créditos no cinema, Lewis conseguiu a incrível conquista de três Oscars de Melhor Ator, fato igualado somente pelo grande Jack Nicholson, mas lembrando que uma das vitórias de Nicholson foi como Melhor Ator Coadjuvante. É bom relembrar que em diversas oportunidades ao longo da história, algumas conquistas do Oscar não foram exatamente merecidas, mas no caso de Lewis, isso não se aplica.

Tanto como em Meu Pé Esquerdo (Jim Sheridan, 1989), Sangue Negro (Paul Thomas Anderson, 2007) e Lincoln (Steven Spielberg, 2012), suas interpretações foram absolutamente perfeitas, e mais do que dignas de qualquer premiação do cinema mundial. E em minha opinião, Lewis merecia também uma estatueta por seu retrato do psicopata Bill ‘The Butcher’ Cutting, no irregular drama de Martin Scorsese, Gangues de Nova York, lançado em 2002. Nesta sua última atuação (esperemos que realmente não venha a ser a última e o ator se arrependa de sua decisão), Lewis une-se novamente ao diretor e roteirista Paul Thomas Anderson, que por sua vez, dirige e escreve este que é seu filme de narrativa mais direta e linear, e por isso mesmo, sua obra mais fascinantemente oblíqua.

O filme tem início com a figura de uma jovem mulher, sentada ao lado de uma lareira, sua face iluminada pelo fogo. “Reynolds fez meus sonhos se transformarem em realidade”, ela diz de maneira calma, se dirigindo à uma figura ainda não identificável. E o que vem à seguir em Trama Fantasma, faz com que esta afirmação seja difícil de acreditar.

Bem-vindo então ao mundo de Reynolds Woodcock (Lewis), um alfaiate do mundo da alta costura, e um homem de natureza meticulosa (evidenciada em uma montagem inicial que mostra Woodcock asseando-se e se vestindo para mais um dia de trabalho). Woodcock é também um homem de composição arrogante, do tipo que olha para a criadagem como se fossem insetos. Em uma manhã, durante um café em um hotel na cidade de Londres da década de 50, ele percebe a presença de uma jovem garçonete, à princípio, pelo fato de ela ser um tanto desastrada. Ele a convida, Alma (Vicky Krieps, de Amor e Revolução, 2015), para jantar, e após uma conversa que se desenvolve de maneira surpreendentemente reveladora, ele a leva para seu estúdio de costura em sua luxuosa casa de campo.

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Lá, ao contrário do que se poderia esperar, Woodcock não tenta seduzi-la, no entanto, pede para que ela pose para ele, para que ele possa criar um vestido para ela. Entra em cena a enérgica e postural Cyril (Lesley Manville, de Malévola, 2014), a irmã de Woodcock, que chega bem a tempo de tirar as medidas da moça, não sem antes examiná-la dos pés à cabeça. Mas em que exatamente consiste este relacionamento que se desenvolve entre Woodcock e Alma? Mais tarde, enquanto caminham pela baía, Reynolds reflete sobre sua sorte em ter encontrado Alma, e ela responde, “Seja o que quer você faça, faça com cuidado”.

Contudo, Reynolds não é particularmente cuidadoso com Alma. Ela faz muito barulho quando passa manteiga em sua torrada; faz muito barulho quando entra no estúdio carregando uma bandeja com o chá da tarde, e por aí vai. É demais para Reynolds e sua natureza meticulosa suportarem, e os dois passam boa parte do tempo discutindo de maneira dura e voltando atrás em seguida.

Mas Trama Fantasma não é o tipo de filme com um clímax convencional; a guerra de nervos entre os dois personagens não caminha para uma resolução comum. É um filme confrontador, de passagens de sonho que dissolvem-se em micro pesadelos, e que não chega nem perto de uma convencional história sobre “guerra dos sexos”. O espectador nunca fica sabendo o que exatamente Alma quer e nem mesmo o que ela ganha com a sua atual situação. Seu passado é envolto em segredos, e ela fala com um puxado sotaque alemão. Interpretada de maneira extremamente eficiente por Vicky Krieps, Alma é um enigma, ao mesmo tempo em que se estabelece como a presença mais transparente do filme de Anderson.

Como não poderia deixar de ser quando falamos do cinema de Paul Thomas Anderson, Trama Fantasma é impecavelmente realizado. Trabalhando como seu próprio diretor de fotografia, Anderson mais uma vez evoca Kubrick em sua composição visual, ao mesmo tempo em que flerta com o estilo do mestre Hitchcock. Isso garante um senso de urgência à produção, que ganha força graças ao score musical à cargo de seu colaborador habitual Jonny Greenwood, e também com a utilização de outras composições clássicas. As atuações são, obviamente, mesmerizantes. Lewis, que não aparecia desde o citado Lincoln lançado há cinco anos atrás, consegue a façanha de criar um personagem instável dentro de uma postura imutável, dando à seu Reynolds um sotaque e timbre vocal incrivelmente diferente do pertencente ao próprio ator. Krieps e Manville, ambas impecáveis, habitam o peculiar mundo desta história com inabalável integridade.

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Imutável também, é a natureza deste Trama Fantasma. Em nenhum momento da história aparece uma reviravolta que possa sinalizar uma mudança permanente no comportamento dos personagens. Ao invés disso, o filme estabelece-se como uma persistente descrição do perverso, onde as intimidades inerentes envolvendo os três vetores humanos do filme se desenvolvem por baixo do cenário de beleza e luxo da produção. E o que se vê por baixo desta camada, é chocante e assustador.

Em um dado momento de Trama Fantasma, Reynolds está delirando devido à febre, e ele imagina sua mãe, em pé, imóvel no vestido de noiva que o próprio Reynolds para o segundo casamento dela, de costas para uma das paredes de seu quarto. Mas ele nunca olha direto para a figura. Ao invés disso, deitado de costas, ele encara o teto e profere “Você está aqui? Você está sempre aqui? Sinto sua falta. Eu penso em você o tempo todo.” Esta sequência resume bem o núcleo central de Trama Fantasma, que aponta para um mistério que nenhum de nós será capaz de decifrar; uma sincera expressão de esperança em meio à solidão da qual tentamos escapar, dentre outras coisas, de nossa recusa em amar ao próximo, e principalmente, do quanto estamos dispostos a abrir mão para sermos felizes ao lado de um outro alguém.

Trama Fantasma está indicado à seis prêmios no Oscar 2018: Melhor Filme, Direção, Ator, Atriz Coadjuvante para Lesley Manville, Score Musical e Figurino, e o filme estreia nos cinemas brasileiros no dia 22 de Fevereiro.

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