Crítica: Joias Brutas (Uncut Gems) | 2019

Ah, como eu adoro quando isso acontece! Não há nada mais recompensador do que observar os pseudo-cinéfilos-cult-alternativo-moderninhos-pagapaudeBacurau enfiarem a viola no saco e chorarem em posição fetal. Cinéfilo que é cinéfilo ama o cinema e assiste qualquer coisa, PRINCIPALMENTE os filmes do Adam Sandler. E tem mais: ainda por cima é fã do cara.

Assim como fizeram em 2017 com seu sensacional thriller Bom Comportamento (Good Time, cuja crítica está disponível aqui no Portal do Andreoli), onde calaram a boca da turminha mencionada aqui em cima ao entregar a melhor (e realmente excepcional) performance do então vampiro-purpurina da saga Crepúsculo Robert Pattinson (que sempre foi bom ator, mas não para a patota citada), os irmãos Josh e Benny Safdie voltam a estapear os “Thales de Meneses” (pseudo crítico de um certo jornaleco mentiroso aí) da vida com este espetacular Joias Brutas (Uncut Gems, EUA, 2019), uma agoniante montanha-russa protagonizada por um Adam Sandler em modo sobrenatural. O que ele faz aqui é cinema em estado puro e cristalino, mostrando que SIM! Ele também sempre foi bom ator.

Seu personagem, Howard Ratner, é apresentado ao público da maneira mais inusitada possível: durante uma colonoscopia. Portanto, a primeira imagem que temos de Howard é de suas entranhas e seu intestino grosso, o que cá entre nós, diz muito sobre sua pessoa. Tal imagem reflete o quanto Howard é emocionalmente vazio, um pós-graduado em canalhice que não dá a mínima para seu casamento ou qualquer outra coisa que não seja dinheiro. Tal imagem também sinaliza para o público que os Safdie planejam examinar a vida de Howard minuciosamente, assim como o gastroenterologista examina seu sistema digestivo à procura de nódulos ou algo do tipo. Seja qual for a intenção dos diretores, há muita coisa acontecendo dentro de Howard.

Claro que uma colonoscopia é algo tremendamente incômodo. Mas se existe alguém que merece este desconforto, este alguém é Howard. Em delicados termos técnicos, Howard é um ferrado. Até sua mulher, Dinah (Idina Menzel), diz isso na cara dele. Afinal, ele destruiu o casamento depois de trepar com uma de suas funcionárias, a jovem e doce (mas não muito confiável) Julia (Julia Fox). Howard tenta fingir que ainda há esperança para ele e Dinah; ele sempre dá um jeito de estar presente para colocar as crianças na cama, e continua ganhando tempo antes de anunciar a separação para suas famílias. Mas Dinah sabe da verdade; Howard é um ferrado.

Ter ido para cama com uma de suas funcionárias é o menor dos problemas de Howard no trabalho. Dono de uma joalheria no distrito de Manhattan, ele parece dever dinheiro para todos os habitantes do local. A maioria dívida de jogo. Ele já deve tanto e para tanta gente, que não resta ninguém a quem ele possa pedir algum emprestado. Sua única chance de se safar de todo o imbróglio que se meteu, é um gigantesco diamante não lapidado que ele acabou de contrabandear da Etiópia. Howard acredita que a pedra pode garantir a ele no mínimo um milhão de dólares num leilão, porém, ele primeiro precisa efetivamente levar a pedra ao leilão, o que será uma tarefa um tanto complicada, uma vez que Howard, o ferrado, relutantemente empresta a gema para a estrela da NBA Kevin Garnett (que interpreta a si mesmo), quando este fica maluco pela pedra depois que Howard – num momento de pura satisfação de seu ego – mostra o diamante para o atleta.

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A decisão de Howard em emprestar a pedra para Garnett desencadeia um efeito em cascata, que coloca Howard em uma desenfreada corrida pela cidade enquanto tenta recuperar sua jóia, evitar os coletores de sua dívida (incluindo um assustador Eric Bogosian, de Talk Radio: Verdades que Matam), e levantar o dinheiro que precisa para fazer outras apostas. Ao longo do caminho ele se enfia em um buraco tão fundo que faz a mina na Etiópia de onde veio o diamante parecer uma poça de água na Quinta Avenida. Howard faz as escolhas erradas em praticamente todas as situações que se apresentam para ele, mas cada uma destas escolhas fazem absoluto sentido se vistas através de sua insana perspectiva, fazendo com que seja fácil sentir-se sugado e completamente imerso na surreal luta de Howard por sua sobrevivência.

Todas estas escolhas ruins, uma atrás da outra, fazem de Joias Brutas um magnífico trabalho de suspense. Desde os primeiros segundos de filme (sim, estou considerando a colonoscopia), Howard se encontra em grave perigo, e continua nesta situação agoniante durante os 130 minutos da produção. Ainda que a tensão diminua em certos momentos da narrativa, há várias outras sequências onde a mesma tensão é amplificada em várias magnitudes. Enquanto todo mundo está comentando sobre como o novo Coringa pode ser potencialmente perigoso, eu estou muito mais preocupado com este Joias Brutas, que pode definitivamente causar alguns ataques de pânico em seus espectadores com seu implacável roteiro.

Joias Brutas, entretanto, não pode ser considerado apenas um thriller. Os Safdies conseguiram construir uma experiência cinematográfica completa; uma crítica afiada e certeira ao “Sonho Americano” que consiste em um seco retrato da assimilação judaica no século XXI, além de, obviamente, ser também um conto (mais um aconselhamento) sobre os perigos do vício em jogos de azar (mas que ao mesmo tempo não deixa de mostrar o quão sedutoras as apostas esportivas podem ser). Porém, Joias Brutas realmente se destaca como um detalhado estudo de personagem apoiado na melhor performance da carreira de Sandler. Disparado. Sandler já esteve bem em outros filmes, mas este é sem dúvida seu trabalho mais completo. No papel do falastrão Howard, o ator encontra uma maneira de canalizar sua energia nervosa e sua personalidade elétrica vistas especialmente no começo de sua carreira, e transformá-las em algo profundo e triste, sem deixar de ser inacreditavelmente engraçado. Não estou me deixando levar no hype não, mas Sandler é pura perfeição aqui.

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Não é só Sandler quem se destaca na produção. O cada vez mais presente Lakeith Stanfield (do thriller Corra!, cuja crítica também está disponível aqui no Portal do Andreoli), aparece muito bem no papel de Demany, um intermediário dos negócios de Howard, e o veterano Judd Hirsch (Independence Day), brilha como o sogro do protagonista. Ainda que a fotografia não seja extravagante, não deixa de ser uma beleza observar o trabalho do excepcional Darius Khondji (Seven: Os Sete Crimes Capitais), que numa sequência em particular ambientada dentro de um nightclub banhado por luz negra, mostra todos seus recursos profissionais. Na cena, Howard e Demany entram no local usando camisas da mesma cor, e enquanto a camisa de Demany brilha num laranja incandescente sob a luz do lugar, a de Howard permanece no mesmo tom morto de antes. É como se nada em Howard ou em torno dele pudesse brilhar, tamanha a carga negativa que ele carrega consigo por todo o filme.

Joias Brutas traz em sua narrativa muito do que definiu os esforços anteriores dos irmãos Safdie, incluindo o interesse no vício e o drama de rua. Mas o filme marca o primeiro passo da dupla em direção a uma nova estratosfera. Durante duas horas, os diretores atraem o público para o tormento de Howard, o ferrado, de maneira simultaneamente excitante e sensível. A ansiedade segue numa crescente o filme todo, até desembocar em uma conclusão completamente chocante e ao mesmo tempo inevitável. Quanto a Sandler, torço para que na hora do ator escolher seu próximo projeto, ele opte por alguma produção de cunho semelhante, ao invés de mais uma comédia descartável da Netflix. O talento dele merece melhor.

Joias Brutas estreia no catálogo da Netflix no dia 31 de Janeiro/2020.

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