Bom dia, meus queridos amigos,
Por que há tanta hostilidade quando o assunto é religião, igreja, sacerdotes — sejam eles católicos, protestantes ou de qualquer outra tradição que o Cristianismo carrega? Por que os franceses demonstram tanto antagonismo diante de expressões como “graças a Deus”, “Deus te abençoe” ou “fica com Deus”? O que habita, em última análise, o inconsciente coletivo de um país que hoje figura entre os mais ateístas do mundo?
Pois bem, não serão algumas centenas de palavras capazes de fazer uma análise completa — social, religiosa, econômica e política — por trás deste fenômeno cultural e histórico, sobretudo enraizado no inconsciente coletivo de uma cultura marcada, sim, pelas garras de uma religiosidade revestida de falsa piedade, e que em muitos casos, tinha como objetivo o poder, a ganância, e não mediu esforços para que os fins justificassem os meios — ainda que esses meios nada tivessem a ver com o espírito do Evangelho.
Escrevo esta coluna a partir de uma perspectiva cristã. Não apenas porque sou cristão, mas porque desde Clóvis, o primeiro rei Franco que, ao se batizar, deu início ao que hoje chamamos França (no século V), até os dias sombrios da Revolução Francesa em 1789, o país atravessou séculos de um poder religioso que se distanciou radicalmente da essência do Evangelho. E, mesmo assim, é aqui, nesse mesmo solo, que uma das histórias mais belas da fé cristã foi escrita e esquecida: no século II, 48 mártires foram executados no ano 177 d.C. no anfiteatro romano da Croix-Rousse, construído no ano 19, durante o reinado de Tibério. Poucos sabem que o Evangelho de João chegou a Lyon no século II pelas mãos de Irineu — discípulo de Policarpo, que fora discípulo do próprio João. Este João, apóstolo e testemunha ocular da vida pública, da morte e da ressurreição de Jesus de Nazaré, transmitiu pessoalmente em Éfeso suas memórias ao jovem Policarpo, que as guardou como tesouro vivo e, por sua vez, as confiou a Irineu. Assim, o testemunho do Evangelho cruzou os séculos até alcançar as margens do Ródano.
Você sabia que algumas das piores guerras religiosas da Europa aconteceram na França? Conflitos entre católicos e protestantes — os chamados huguenotes — deixaram cicatrizes ainda visíveis nas famílias e na memória nacional.

Do ponto de vista prático e experiencial, Johnna e eu, em quase sete anos vivendo aqui, jamais sentimos tanto antagonismo e tensão ao se mencionar Deus, igreja ou sacerdotes. E compreendemos — damos razão — às centenas de franceses com quem conversamos e que carregam feridas profundas, traumas históricos e pessoais nascidos de um passado em que o abuso de poder político e religioso se confundiam, a ponto de uma simples palavra, como “igreja”, se tornar um gatilho, uma violência para ouvidos ainda machucados.
As igrejas se tornam galerias de arte, pontos turísticos, monumentos com consequências visíveis de uma história inapagável: marcas de canhões, estátuas destruídas — testemunhas silenciosas dos conflitos entre católicos e protestantes, e da própria Revolução Francesa, que foi um grito coletivo de “basta”. As estatísticas falam por si: apenas 2% da população se identifica como protestante, 4% como católica. O restante — a esmagadora maioria — é composta por agnósticos ou ateus, colocando a França entre os países mais secularizados do planeta.
No entanto, ao desconstruir a religiosidade institucional e desmistificar os abusos cometidos em nome de Deus, ao separar o Evangelho das políticas de Avignon e dos papas que disputaram poder com Roma por quase 70 anos, abre-se um espaço inesperado. Nesse espaço, as pessoas escutam. Concordam. Se emocionam. Se encantam com as parábolas, os ensinamentos simples e inclusivos do Evangelho — a verdadeira Boa Notícia!
Paro por aqui. Pois seria necessário um livro para aprofundar com mais dor — e esperança — as razões pelas quais o povo francês é tão hostil à religião e, ao mesmo tempo, tão fraterno quando encontra alguém que, sem proselitismo, sem imposições, com honestidade e amizade sincera, carrega em si as marcas de um Evangelho que é Boa Notícia, que liberta, e que sobretudo inclui, e convida ao reencontro com a espiritualidade genuína.
Até a próxima.
Fábio (Entre Lyon e Paris)