Na semana passada avaliamos, dentro dos Programas de Variedades, como o Adereço multiplicado e bem aplicado, conquista novos poderes, ultrapassa as fronteiras, se expande e se transmuta no próprio cenário. Hoje, veremos como tal processo criativo se desenvolve também nos Programas de Dramaturgia.
Focaremos durante toda a coluna no que talvez seja o melhor exemplo para ilustrar esta transformação do Adereço em Cenário: o Carnaval dos Anos 30 da minissérie “Dois Irmãos”, 2017. Em um grande trabalho coletivo das equipes de Criação e de Adereços, todo o cenário foi edificado basicamente com o papelão como matéria prima.
O projeto, como muitos, começou por uma maquete idealizada pela Figurinista da minissérie, a pedido do Diretor Luiz Fernando Carvalho. Já conhecido por seu modus operandi intimamente ligado aos Departamentos Criativos, e sendo profundo apreciador da Arte como um todo, o diretor encomendou um cenário inovador, todo feito em papel, artesanalmente.
Baseando-se no filme “O Reino das Fadas” do cineasta francês Georges Méliès (1861/1938), a Figurinista Thanara Schönardie idealizou a maquete do cenário, medindo aproximadamente 40 x 50cm. No filme, uma princesa era raptada e levada para um reino encantado e distante, nas profundezas do oceano. Lá, permanecia cercada por uma fauna e flora submarina até que fosse resgatada. Inspirada pela técnica de espaços cênicos deslocáveis de George Méliès, a Figurinista arquitetou um mundo fantasioso submerso nas águas tropicais do Rio Negro, onde painéis e recortes dispostos em profundidade transmitiriam ao público, uma noção imaginária de volume no cenário. Observem o slide abaixo, que demonstra duas versões do mundo submarino de Mélies e o comparem ao cenário da minissérie, retratado no slide anterior.
O desafio consistia em transformar a maquete em um cenário de 420m², somente com papelão e com uma verba de produção reduzida. A Equipe de Adereço, Cenografia, Arte e Figurino se uniram para viabilizar esta missão quase impossível, que durou aproximadamente cinco meses.
No início, utilizaram papelão recolhido por todas as áreas de descarte e reciclagem dos Estúdios Globo. As caixas eram desmontadas, recortadas e emendadas para se transformarem em componentes do projeto. Quando se esgotaram todos os recursos de reaproveitamento, foram compradas placas de papelão ondulado, para que o trabalho fosse concluído.
Foram quilômetros de cartolinas e papelão cortados a mão, com a exceção de alguns trainéis* feitos com agrupamento de aproximadamente 5cm de papelão. Estes últimos tiveram que ser recortados com a serra “Tico-Tico”. Paralelamente, todos os elementos cenográficos foram pintados à mão, peça por peça, com exceção das flores, que foram impressas e depois, pintadas por cima.
Além dos quilômetros de papéis, o cenário consumiu baldes de cola branca, cola de contato, estiletes, litros de tinta PVA, e lascas de PVC para sustentação das folhas das bananeiras. Falando em bananeiras, estas tinham quatro metros e meio de altura, e suas bases foram construídas com tubos de papelão reaproveitados do interior de rolos de tecido.
Os abacaxis foram construídos com centenas de pratos de papelão e também estruturados com tubos de papelão do miolo dos rolos de tecido.
Como se não bastassem todas estas criações, ainda havia o problema da elaboração do telão do fundo do palco, que representava o Rio Negro. Medindo oito metros de largura por seis de altura, a equipe precisava encontrar um tecido para esta cortina de fundo que sustentasse os elementos cenográficos, e que ao mesmo tempo, tivesse a transparência necessária para transmitir a noção de profundidade.
Já para viabilizar a montagem dos elementos no tecido, foi feita uma pré-marcação com velcro, enquanto o pano estava esticado no chão. O velcro possibilitou a reorganização das peças aplicadas ao tecido depois de pendurado, respeitando o caimento do pano, e evitando possíveis rugas e rasgos.
Seis bambolinas* de 17 metros de largura, com alturas variando entre 1,5 e 3 metros sustentavam as peças suspensas do cenário.
Inspiradas nas águas do Rio Negro, ondas feitas em papelão circulavam e margeavam todo o ambiente, incluindo o palco.
Vejam a leveza do cenário criada pela transparência e pelas várias camadas de elementos cênicos:
No ápice do baile, um enorme peixe todo feito com escamas de discos de papelão, com milhares de fitas laminadas coloridas e brilhantes, desce sobre os foliões. Lívia, (Monique Bourscheid), ainda jovem, desperta o amor e a rivalidade entre os gêmeos Omar e Yaqub (Enrico e Lorenzo Rocha).
Tal resultado esplendoroso só foi possível mediante a ajuda de todos. Seis Aderecistas fixos contaram com a colaboração de aproximadamente 20 pessoas flutuantes, entre Costureiras, Camareiros, Bordadeiras, Figurinistas, Produtores de Arte e Cenógrafos que sempre contribuíam quando tinham algum tempo extra disponível, nos cinco meses de pré-produção e fabricação deste cenário. Já a montagem do mesmo, foi feita em três dias.
Da criatividade coletiva dessas mãos trabalhadeiras surgiu este “Mundo Encantado Submarino Tropical Amazonense”, todo em papelão recortado, que brilhou durante os três minutos que foi ao ar no primeiro capítulo da minissérie, marcando o começo da ruptura dos gêmeos, que aprendem que serão rivais eternos.
O adereço multiplicado, recortado e pintado, transmuta-se nesse cenário mágico e encantador. Impossível não se apaixonar por este trabalho! Aplausos para todos os talentos envolvidos!
Na semana que vem, prometemos mais novidades e surpresas. Até lá!
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* Trainel: Painel estruturado em madeira, móvel, de diferentes formas e tamanhos, que se pinta para imitar muro, jardim, porta etc., fazendo as funções de cenário.
* Bambolina e Vara: Madeira ou cano longitudinal preso no urdimento, onde são fixados elementos cenográficos, equipamentos de luz e vestimentas cênicas. Sua movimentação pode ser manual, utilizando-se contra-pesos e elétrica.