Priscilla Ávila: Um estranho café com leite

Olho para esse braço e essa mão a minha frente e fecho meus olhos espantado. Ao reabri-los, sinto esse braço e essa mão. Fecho os olhos e abro novamente. Novamente. Novamente. Será um sonho lúcido?

Luciana sabe que consegui entregar o relatório semanal no prazo e não havia mais nenhum motivo para aquela reunião. Ali estava eu, diante de dois olhos que pareciam querer me perfurar. Sinto medo, ou receio, ou azia pelo café com leite que tomara. Mas aqueles olhos pareciam querer algo de mim. “Acho que você já está um bom tempo na empresa, Leandro, e nós nos apegamos tanto às pessoas, sabe? Eu percebi como você me olha, eu entendi desde o começo o que você busca e acho que podemos fazer uma parceria de negócios muito boa se você continuar a trabalhar aqui. Venha na minha casa hoje às oito. Vou te mostrar algo que vai ser bom para você. ”

Compreendi muito bem o tipo de know-how que deveria adquirir nesse novo emprego. Entretanto, não consegui entender qual olhar que ela achava que eu tinha. Talvez ela apreciasse uma cara de enjoo matinal. Olho para uma revista em sua mesa e vejo um modelo de sunga com cara de enjoo matinal. Enjoo deve ser sexy, então. Sinto um gosto amargo na boca. Devo ser sexy demais? Esse é meu problema? Porque sempre existiu um problema. Não era a primeira vez. Sempre foi toda vez. Antes de Luciana, foi Angélica, Manoela, Beatriz. Minha carreira sempre passou por concessões obrigatórias e omissões indispensáveis.

Existem vários tipos de problemas que poderiam me levar a pedir demissão. Porém, por justa causa? Como provar que minha azia era um problema crônico e sexual? Poderia alegar assédio sexual? E quem vai me empregar se eu entregar? Acharei outro emprego sem Lucianas?

Ouço um amigo que diz que deveria trabalhar por mim mesmo. Resolvi buscar possibilidades. Saio para malhar de manhã e vejo mulheres no caminho me olhando. Já entendi, meu enjoo matinal é sexy. Sigo em frente tentando esquecer esses rostos famintos. Vou a um café tentar me concentrar no meu projeto, mas droga! Tomei café, acho que senti um enjoo porque olho ao lado e tem uma mulher vindo sentar na minha mesa. “Oi, gostei de você. Pode me passar seu telefone para gente se conhecer melhor?”. Não tive paciência para responder.

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Saio e busco outro lugar, mas aonde vou, mais mulheres me olham. Não consigo pensar direito. Porém pode ser um trauma, não deveria ser real. Pode ter sido minha ex-namorada que me prendia em casa para eu não ser ‘admirado’ por outras pessoas e servir só aos seus desejos. Ou então minha outra ex-namorada que, quando eu saía com meus amigos até tarde da noite, achava que estava me prostituindo. Ou a outra que me bateu duas vezes quando resolvi questionar porque ele sumia alguns dias. Estava cansado de lidar com mulheres e desejos alheios que me fizeram gastar um apartamento em terapia no intuito de descobrir onde estava a minha culpa nisso tudo. Aquela manhã com Luciana me clareou a mente. Deve ser azia.

Fiz tratamento para enjoos e comecei a me sentir melhor por alguns dias. Desfoquei e evitei alguns lugares e convites para não ter que lidar com tantas mulheres até ser tratado corretamente. Tentei sair apenas com alguns homens para ver se me sentia em paz, achei que poderia começar a gostar de homens e acabar com alguns traumas. Tentei duas vezes ou quatro, impossível contabilizar ao relembrar o número dez vezes maior de vinhos tomados.

Voltei a focar apenas em trabalho, um amigo me envia uma super oportunidade e minha conta bancária até dá um sorrisinho de leve nesse momento. Ao abrir a proposta vejo que é um job relacionado à empresa de Beatriz, CEO da empresa e mãos bem ‘carinhosas’. Acho que até volto a sentir enjoo. Fecho o e-mail e abro meu facebook e vejo uma mensagem de Manoela e mais três rostos de mulheres desconhecidas. Vejo sintomas da doença. Acho que irão perceber meu enjoo até virtualmente. Entro em desespero, tomo três pílulas de melatonina e durmo.

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Já abri e fechei meus olhos diversas vezes, não deve ser sonho lúcido. Vou levantar e me beliscar, no impulso consigo visualizar minha imagem no espelho em frente a cama. Meu sistema límbico descontrola totalmente. Vejo uma mulher. Estou dormindo com certeza! O choque de adrenalina está muito grande que corro pela casa, mas meu corpo está mais leve. Percebo que meu corpo mudou totalmente, não era só o braço. Estava completamente mudado. Me transformei na imagem do meu próprio medo? Desespero-me e ligo para meus amigos, que desligam achando que era um trote idiota que resolvi passar. Procuro ajuda e nada.

Não saí de casa por três dias. Choro e choro, mesmo que antes nunca tivesse chorado e, por isso, choro e choro mais. Uma semana. Não tenho mais comida e não tenho mais nenhum doce – que incrivelmente passei a amar. Resolvo sair, mas lembro do meu receio em encontrar todas aquelas mulheres. Epa, peraí! Agora eu também era uma mulher! Esse momento me enche de alívio, percebo que poderia sair sem ser notado e poderia tirar o peso de ser julgado e tratado como uma entrecôte parisiense.

Olho no espelho e finalmente aceito o que vejo, finalmente poderia me sentir menos oprimido e menos culpado pela minha cara de enjoo. Sinto uma liberdade que nunca havia experimentado e num minuto de reflexão me vem uma dúvida aterrorizante: e se os homens me tratarem da mesma forma? Bom, acho que vou largar o café com leite.

Help me to stop

No one can ever tell you

Sorry to hear it

Music played by your mistakes

Songs forgotten by my guilt

It’s not so hard for a man

With damaged guts

I’m going back to the beginning of this game

It’s not gonna happen till the sunset

And I can’t wait till the end

I had three choices

I chose not to choose

Maybe it’s me that looses

Interference everywhere

Choices I can choose

Trying not to loose

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