Priscilla Ávila: Uma “pedalada” na herança familiar

Meus pés não conseguiam ficar firmes nas sandálias. Aflição e adrenalina me movimentam cada vez mais rápido. Estou correndo mais que posso. Ouço os passos dele numa velocidade maior que a minha. Em poucos segundos me alcançará. Mas não posso com esses pés escorregadios. Grito ou corro? A estação do metrô está próxima! Corra Laura, Corra!

Não consigo pensar, não dá tempo, continuo me arrastando nessas malditas sandálias que ganhei da minha mãe. Palmilhas confortáveis e escorregadias, ótimas para esse momento. Só que com meu celular novo, ele não vai ficar! Foi presente do meu pai, assim como meu pé chato que me ‘ajuda’ a desacelerar o passo, assim como minhas pernas grandes e tortas que me fazem perder o equilíbrio e também como minha hérnia de disco que me fez ir a essa massagem, me deixando mais oleosa que os pastéis de queijo da minha avó.

Será que ele ainda corre atrás de mim? Não consigo olhar para atrás, não tenho tempo, não estou segura e tenho pés com óleos indianos de 250 reais a sessão. Nossa, lá se foram 250 reais nesses pés. Estranhamente percebo que meus pés são a síntese dos meus pais. A metade do joanete veio da minha mãe e a outra metade do meu pai. Meu corpo todo era um mix de pedaços defeituosos deles. Como consegui herdar apenas as partes ruins? Será que minha mãe desejou um quadro de Picasso quando estava grávida? Não consigo entender. Mas também não consigo pensar! Corra Laura, Corra!

Então olho para atrás e esse homem ainda corre, por que não desiste? Meu celular custa dez vezes mais que a sessão de besuntamento de pés. Acho que esse celular foi uma forma do meu pai se desculpar pelos defeitos que me deu de presente. Assim espero, porém não espero. Corro! Mais 50 deslizadas e estarei no metrô. Já começo a ver pessoas, vou acalmando, sei que ele irá desistir. Vejo uma mulher com uma menina perto da entrada. Não vai adiantar pedir ajuda, melhor eu continuar correndo para dentro onde terá seguranças.

Elas estranhamente estão sorrindo. Qual motivo de tanto sorriso? Sei que ando estranho, sei que sou esquisita, mas estou numa emergência, não percebem? Mas por que ainda não gritei? Também será parte da herança de meu pai que só não é mais calado que seu próprio retrato?

Cheguei! Ufa! Agora falarei com o segurança. Avisarei todo mundo. Não perderei meu celular! Olho para atrás para identificar o sujeito e não o vejo. Onde ele foi parar? Só vejo aquela mulher lá fora e a criança. Mas tem dois braços enormes em volta da criança. Reconheço um pedaço do ser, era o homem que estava me perseguindo. Meu coração dispara ao pensar que estaria assaltando aquela família, mas no mesmo instante congelo no choro da mulher e no sorriso ao mesmo tempo. Era um abraço de saudade.

A única possível coisa que o meu assaltante roubaria era o coração daquelas duas mulheres. Ele corria para encontrar o amor daquela família. Eu corri para encontrar o constrangimento. E ele estava lá enorme na minha frente, tentei ultrapassá-lo, porém meus pés estavam atolados na vergonha. Não me mexi mais e lágrimas enxaguaram meus pés oleosos quando reconheci o amor. Vi naquela mulher o mesmo sorriso da minha mãe ao ver meu pai e naquela criança a mesma felicidade de quando meu pai chegava em casa querendo brincar.

Tento dar o próximo passo, ainda não consigo. Realizo que me falta algo. Mas não fui roubada. Realmente está tudo aqui, sempre esteve. Eu só ainda não aprendi a caminhar com os meus próprios pés.

Foto: Jeyne  Stakflett

We are trying to give you our truthful legacy

But, when the good is not so good

can you see the bad is not so bad?

Raised Child

In the mystery of our choices

Even if there were none

Inheritance denied by your desires

Dripping milk, feeding your fate.

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