As Tops do Kacic: A Luz no Fim do Mundo (Light of My Life) | 2019

Em um mundo onde a população feminina foi aniquilada por uma misteriosa doença, um pai tenta guardar e proteger sua filha, possivelmente a única garota viva da civilização humana, de homens que iriam literalmente despedaçá-la se a encontrassem. A Luz no Fim do Mundo (Light of My Life, EUA, 2019), consiste em uma produção cuja proposta não poderia ser mais atual, em um mundo onde o empoderamento feminino ganha força a cada dia (e muitas vezes da maneira equivocada). A produção ataca os temores primais dos pais e das mulheres de qualquer condição ou lugar do mundo, A Luz no Fim do Mundo define-se como mais uma soberba performance de Casey Affleck (vencedor do Oscar de Melhor Ator pelo drama Manchester à Beira-Mar, 2016), que constroi uma obra tocante e crível ao lado de uma companheira de cena de apenas 11 anos de idade. O filme também marca a sólida estreia de Affleck como diretor e roteirista.

Não deixa de ser uma escolha interessante de Affleck em se colocar como o protetor de uma mulher, e por consequência, o guardião do futuro da espécie humana, uma vez que o ator teve seu nome envolvido em uma controvérsia envolvendo assédio sexual. A Luz no Fim do Mundo, entretanto, é tão intenso quanto inquestionavelmente sincero, e é um filme que será analisado de diferentes maneiras dentro da sociedade atual. Não por acaso, o filme “pulou” um lançamento no Festival de Sundance e foi exibido no Festival de Berlim, dentro da Mostra Panorama, que apresenta produções independentes e de arte que lidam com assuntos controversos e que geralmente provocam muita discussão.

O que se vê em cena é um urgente drama distópico que por vezes caminha na corda bamba da credibilidade de sua narrativa, e que ocasionalmente oscila em termos de ritmo. Entretanto, assim como seus personagens, alcança seu destino graças a força de seu poder de convicção. Defeitos à parte, também relacionados à duração excessiva e a tendência de se repetir mais do que deveria, A Luz no Fim do Mundo é um bem-vindo exemplar cinematográfico de alta qualidade e sem adornos desnecessários.

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De início, A Luz no Fim do Mundo parece bastante com o recente drama Sem Rastros (cuja crítica também está disponível aqui no Portal do Andreoli), e, tematicamente, com o drama pós-apocalíptico A Estrada (The Road, 2009). Assim como os citados, o filme de Affleck queima devagar, sempre cauteloso. A introdução ao personagem do pai (Affleck), e da filha, Rag (Anna Pniowsky, do recente thriller Ele Está Lá Fora) acontece, assim como em Sem Rastros, em uma floresta por onde a dupla tenta fugir. Contudo, Affleck está mais interessado em estabelecer a dinâmica entre a dupla do que determinar os detalhes do cenário onde se encontram. Affleck já coloca em ação todo seu talento como ator na maravilhosa sequência de abertura do filme, onde seu personagem conta uma improvisada história de ninar para a menina.

Vestida para parecer um garoto, Rag está chegando à puberdade; ela quer ler livros e brincar, mas ela também se pergunta sobre sua mãe, e o que aconteceria se os “homens maus” a encontrassem. A mãe, interpretada de maneira breve por Elizabeth Moss (do thriller Nós, cuja crítica também está disponível aqui no Portal), foi morta pela “praga” pouco depois de Rag nascer. As poucas mulheres que sobreviveram enfrentaram a captura à força, estupro e a morte certa. E para o pai, é imperativo manter Rag a salvo até, ou se, as coisas um dia mudarem. O personagem de Affleck é sempre honesto com a garota, e tenta responder a todas as suas perguntas enquanto fogem através de um mundo brutal, evitando contato com o resto da raça humana à todo custo para que Rag não acabe indo parar em um “bunker para mulheres”.

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Comparações com a série The Handmaid’s Tale são inevitáveis, mas a alma de A Luz no Fim do Mundo consiste em um retrato de um pai e sua filha, e o que ele está disposto a fazer para mantê-la a salvo. Algumas das cenas entre os dois são de partir o coração, à medida em que Rag luta para tentar compreender as questões que ele não pode responder, e com o equilíbrio da relação entre ambos, que começa a oscilar. A Luz no Fim do Mundo se torna ainda mais elemental quando a dupla retorna para a casa onde ele passou a infância, e a paisagem nevada de Vancouver contrasta ainda mais com os mesquinhos empreendimentos da humanidade.

O filme de Affleck é a prova, se é que seria necessário provar mais alguma coisa, do ator (e agora diretor) talentoso que ele é: alguns diálogos entre ele e Pniowsky são extensos e complexos, e outros diretores dificilmente os deixariam se estender de tal maneira. E ainda que tais diálogos dêem a A Luz no Fim do Mundo um certo ar de indulgência artística, a dinâmica profunda entre a dupla de intérpretes não funcionaria sem eles. A produção carrega seu público por uma jornada de esperança em meio à desolação, e coloca o espectador para ponderar sobre as bases de nossa existência como sociedade, hoje em dia cada vez mais ameaçada por violentos abusos de uma parte, e incorreta insurgência de outra.

A Luz no Fim do Mundo estreia nos cinemas brasileiros no dia 10 de outubro.

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