Crítica: Meu Nome é Dolemite (Dolemite is My Name) | 2019

É seguro presumir que Eddie Murphy sempre idolatrou Rudy Ray Moore, o lascivo e impetuoso ícone do blaxpoitation e criador de Dolemite, um dos mais lembrados e celebrados títulos do gênero lançado em 1975. Murphy espelhou muito do início de sua carreira no trabalho de Moore, com sua hilariante boca-suja e total desprezo pela parcela caucasiana da plateia. Mas Murphy, que já era uma estrela de Hollywood quando tinha 25 anos de idade, provavelmente nunca pensou que sua carreira nos últimos anos teria tanto em comum com a trajetória de Moore, um pioneiro que financiou inacreditavelmente sozinho seu filme mais famoso e escalou strippers para formar o elenco. Mas uma vez que você recebe U$15 milhões para estrelar algo como Um Tira da Pesada 3 em 1994, imaginar tal cenário é realmente muito improvável.

Mas Murphy se encontra em um lugar diferente hoje em dia. Já faz um bom tempo desde que ele protagonizou algum hit e mais de uma década desde que esteve em algo que não fosse filmes-família da Disney ou sequências de Shrek. Murphy já sabia que ele teria que arregaçar as mangas e trabalhar para voltar a ser o que era, e que melhor maneira de fazê-lo do que voltar ao básico e exumar a lenda de Moore e sua roupa de gigolô verde-limão? Uma biografia maluca e divertida sobre os bastidores da “obra-prima” de Moore, Meu Nome é Dolemite (Dolemite is My Name, EUA, 2019), pode não detonar com o mesmo impacto o filme que o inspirou, mas é exatamente o tipo de filme que Moore sempre teve em mente para agradar seu público-alvo: uma produção crua, totalmente protagonizada por artistas negros e recheado de “peitos, ação e kung-fu”.

O mais importante, é que Meu Nome é Dolemite é um filme que força Murphy a lutar e se esforçar por cada frame; um filme que dá corda para o astro e o deixa livre para fazer o que faz de melhor por duas horas inteiras. Trata-se de um filme que anseia por evocar a maníaca genialidade que tornou Murphy uma estrela, a comédia física que o tornou rico, e a carismática vulnerabilidade que o tornou insubstituível. Quando o filme termina, a sensação é de que trata-se mais de um tributo ao próprio Eddie Murphy do que ao homenageado Rudy Ray Moore.

Se desenrolando como um cruzamento entre o documentário/homenagem de Mario Van Peebles, O Retorno de Sweetback (Baadasssss!, 2003) e o excepcional Os Picaretas (Bowfinger, que até hoje é minha comédia favorita), Meu Nome é Dolemite pode não ser tão inspirado ou hilariante quanto os filmes citados, mas sua extravagância mantém a produção sempre acima da média, e seu ritmo segura a atenção do público até o final. O espectador é apresentado a Moore em algum momento da década de setenta, e o afiado roteiro da dupla Scott Alexander e Larry Karaszewski (das fenomenais biografias O Povo Contra Lary Flint e Ed Wood), não desperdiça um minuto sequer em já deixar bem claro quem é realmente Rudy Ray Moore; quase na casa dos 50 e ainda ralando como o assistente de uma loja de discos em Los Angeles, Moore é uma grande personalidade presa em uma vida opressiva e pequena. Entretanto, Moore não perde a fé de que algo maior espera por ele. Incansável e confiante, Rudy tem um único problema: ele não tem a mínima ideia do que fazer com suas qualidades, e em uma época onde Hollywood só abria portas para atores negros que pareciam Billy Dee Williams, a meia-idade e a pouca pinta de galã de Moore não iriam levá-lo à lugar nenhum.

Veja Também  Vivian Soares: ‘Tudo Bem no Natal que Vem’ leva o autêntico espírito natalino brasileiro às telinhas.

A inspiração de Moore chega na figura de um sem-teto pinguço que de vez em quando aparece na loja sempre contando uma história sobre uma lenda urbana da comunidade negra, e Moore simplesmente não consegue descartar a ideia de que outras pessoas que ele conhece estariam famintas por este tipo de humor puro e malicioso que não foi diluído para os brancos. Ele então pega tais histórias, dá uma polida nelas e as entrega para o público utilizando uma bengala de cafetão nas mãos. Ele finalmente encontrou seu nicho, e Murphy faz seu personagem brilhar entregando uma variedade de piadas que realmente fazem o público rir à beça. Eu mesmo me peguei gargalhando diversas vezes e até perdi algumas piadas que vinham na sequência. Mas Moore não quer ficar apenas no mundo do stand-up comedy, e depois que ele e seus amigos (que inclui nomes como Mike Epps e Craig Robinson) vão ao cinema e percebem que são as únicas pessoas de cor no local, Moore constata que seu futuro está na realidade na sétima arte. E daí que ele não será o próximo Shaft? Ele pode ser o primeiro e único Dolemite! A empreitada custará tudo o que ele tem, mas a confiança de Moore em seu taco fará toda a diferença.

Inevitavelmente, é aí que Meu Nome é Dolemite realmente ganha vida; por mais previsível que a narrativa possa ser, as excentricidades do filme ultra-independente de Moore são uma delícia de descobrir, e o sempre competente diretor Craig Brewer (dos excelentes Ritmo de um Sonho e Entre o Céu e o Inferno) guia seu personagem por tais descobertas com mãos firmes. Ajuda o fato de que Dolemite é um filme completamente ridículo (não tanto quanto o Chubby Rain do citado Os Picaretas, mas quase), e mesmo o mais simples dos documentários sobre as filmagens da produção já seria uma tremenda de uma diversão. Moore não só filma a coisa toda em uma boca de fumo condenada, como ainda recruta estudantes para trabalhar nas filmagens e instrui seu roteirista socialmente consciente, Jerry (Keegan-Michael Key), a escrever uma história inspiradora que permita na narrativa a inserção de um esquadrão kung-fu formado só por garotas e talvez até um ou dois exorcismos (!).

Veja Também  Crítica: The Power (2021)

Mas o melhor ainda está por vir: Moore contrata o “grande” D’Urville Martin — o mais famoso da trupe depois de interpretar um operador de elevador no clássico O Bebê de Rosemary — para o papel do vilão. Mas há uma questão: Martin quer dirigir. E então, por aproximadamente 45 minutos de sua narrativa, este veículo que marca o retorno de Eddie Murphy generosamente abre espaço para Wesley Snipes brilhar. Interpretando Martin como um bêbado que só pensa em mulher, Snipes põe o filme embaixo do braço e vai embora com ele. Snipes dá um show numa performance hilariante, volátil e pretensiosa que reflete à perfeição a própria sinceridade de Moore. Sempre divertido mas raramente inspirador, Meu Nome é Dolemite transporta-se para outra dimensão sempre que Snipes está em cena. Se todo o filme fosse tão inspirado quanto a cena onde Martin sai furioso das gravações com um par de intestinos falsos projetados para fora de seu estômago, Meu Nome é Dolemite com certeza seria a melhor coisa em toda a carreira de Murphy.

De qualquer forma, o filme é um lembrete extremamente sólido do que seu protagonista é capaz de fazer; Murphy não perdeu uma gota sequer do seu timing cômico, e as poucas cenas que requerem que ele vá mais fundo dramaticamente provam que Murphy está entrando na casa dos 60 com muita, mas MUITA coisa ainda por ser explorada em seu vasto armazém de talentos. E se Meu Nome é Dolemite parece satisfeito em apenas proporcionar algumas boas risadas para o público, talvez isto seja um testamento de como o filme não precisa de mais nada para ressoar com mais profundidade no coração do espectador. Aqui temos uma história sobre pessoas negras levantando umas às outras e adentrando uma indústria que até então enxergava apenas branco e verde. Algumas coisas não mudaram, mas este filme — desde seu elenco até seu conceito básico — é uma satisfatória ilustração de como elas podem mudar.

Meu Nome é Dolemite estreia no catálogo da Netflix no dia 25 de outubro.

Loading

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Compartilhe esta notícia

Mais postagens