Cheguei ao Japão ainda bem jovem. Passaporte nas mãos eu carregava um sonho, uma mala, meus dezesseis anos recém feitos e a coragem destemida de uma adolescente.
O ano era 1987. Verão de pelo menos 33 graus. Sem vento. O ar por lá é bastante seco coisa que me fazia transpirar um segundo após sair do banho.
Meu contrato inicial com a agência de modelos era de dois meses. Formato habitual nessas parcerias entre os países. Fui. Sem inglês nem japonês. Cara e coração.
Acho que muito mais corajosa do que eu foi minha mãe, Stella Maris. Minha eterna estrela do mar, onde quer que esteja!
Graças à confiança que depositava em mim e em minha carreira ela me emancipou. E eu vivi uma das mais interessantes, audaciosas e fortalecedoras imersões que alguém tão inexperiente com a vida pode experimentar.
Eu estava acompanhada pela responsabilidade, pela solidão, pelo profissionalismo, pela fome de viver de quem se atira e vai trabalhar no país mais tecnológico do mundo, tão dual, tão repleto de fé e sabedoria, e tão distante da minha realidade, onde as ruas não têm nome.
Conheci modelos de todas as partes do planeta. Misturamos nossas culturas, medos, alegrias e conhecimentos. E porque não, nossos desconhecimentos? Muitos eram tão crianças como eu. Pouquíssimos mais velhos (de dois a três anos) no máximo.
Observando este tempo novas reflexões faço aqui, nestas linhas:
A contradição daquela ilha encantadora beira o singular. Tókio é acesa, eletrônica, hi-tech. Mistura os trabalhadores comuns e apressados em suas ruas, com as meninas “revestidas” por mangás. Executivos, idosos, bicicletas e gueixas tudo e todos. Em uníssono.
Fato é que se você se afasta um pouco de bairros mais centrais e luxuosos você se depara com o Palácio Imperial, seus frondosos parques e a cultura milenar desse povo.
Eles trabalham muito e eu aprendi a trabalhar com eles. Disciplina, compromisso e seriedade estão impressos em mim e eu agradeço poder voltar ao meu país, imbuída destes valores, para iniciar minha jornada.
Minha primeira. booker (agente) chamava Junko. Nos demos bem logo de cara mesmo sem entendermos uma a outra. Neste tempo descobri que a mímica era uma linguagem universal.
Era ela, em seus 1.50 cm de altura, quem me conduzia aos meus auditions (minhas visitas às clientes quando eu já estava quase escolhida para um trabalho especifico) e aos appointments (compromissos – como os castings por aqui). Muitas vezes Junko fugia de minha vista e eu saia correndo para não me perder. Tókio é um formigueiro humano.
A noite como era usual podíamos jantar nos restaurantes parceiros da agência onde encontrávamos nossos pares. Todos os modelos que estavam na cidade freqüentavam os mesmos lugares. Fiz muitas amizades. Uma delas me acompanha ate hoje. Aprendi muito. E o que eram dois virou seis meses e um amor tão genuíno por aquele lugar que eu não pensava em me despedir.
Estar em Tókio era fascinante.
Sob o ponto de vista da economia, (inflação que quase não existe comparada a nossa), um poder quase surreal de compra daqueles sonhos de consumo, que depois de dois meses estão com o mesmo preço.
Meu walkman ultramoderno era quase um ET quando voltei para o Brasil. Foi aquele aparelho que reproduziu diversas vezes, a fita cassete do álbum Joshua Tree do Grupo Irlandês U2, e que me conectou a eles de maneira especial e inesquecível.
Minhas viagens a trabalho para Osaka e outras cidades eram inundadas pela voz de Sir Bono Vox. E são até hoje.
Não estranhei a comida.
Mas pra ser franca eu e o Wassabi nos demos mal depois que eu, na primeira noite, em um restaurante tipicamente japonês, mastiguei uma bolota expressiva da pasta verde. Acho que choro até hoje.
Café nem pensar. Carne tampouco. Para matar a saudade do meu café, minha mãe enviava na mala do nosso contato internacional um ou dois pacotes do produto e quando chegavam do outro lado do mundo era pura alegria.
Dividi apartamentos, angustias, músicas, lágrimas, alegrias, momentos que em mim estão imortalizados.
Namorei um havaiano. Namoro inocente de uma menina inocente. Mas que me fazia sentir ainda mais viva.
È fato que o controle quase surreal do peso, o gerenciamento da grana e a impossibilidade de falar com os meus, mais de uma vez na semana eram momentos duros. Vi colegas engordarem muito, emagrecerem para além da conta, meninas deprimidas, algumas consumindo álcool ou drogas em excesso no frenesi da liberdade e na inexperiência de suas idades. Toda maneira não julgo. Desde que defini que eu cuidaria de mim e não perderia o meu controle passei a respeitar as escolhas de cada um. E isso me bastava.
Comecei a escrever com fluência e constância nessa época. Eu carregava um caderno comigo e anotava tudo. Cheguei a escrever poesias para os namorados alheios (as cartas demoravam arrastados vinte dias para chegar ao destino), e me habituei a amar as palavras…
Creio que essa é a origem da minha escrita. Dei minha voz ao papel. Sem medos. E ele foi meu parceiro em terra tão distante.
Escrevia no objeto que estivesse a mão. Até em papel higiênico eu anotei frases de alguma poesia. E assim sigo há anos.
Esta viagem especifica ao Japão foi o meu primeiro divisor de águas.
Amadureci, aprendi a lutar por mim, a cuidar de mim, a perceber a importância das relações humanas que desenvolvemos. Das vidas que conectamos… Olhei para mim desafiando meus limites…Minhas escolhas, minha vontade de fazer dar certo.
Aqui estou eu, trinta e seis anos depois para te contar essa história.
E, sobretudo para agradecer a Roberta de 1987 que em sua bravura e coragem me possibilitou tudo isso.
PS * (registro também minha admiração ao povo Japonês e minha alegria em imaginar a minha volta. Um dia. Ainda nesta vida.)
Domo arigatô gozaimasu!
Kami sabe o que faz.
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Imagem: Tudo sobre Tóquio
Respostas de 6
Ufa! Que experiência incrivelll, ate me senti daqui obeservando tudoooo, qdo sai outro texto sobre essa Historia?
Ameiii!!!
Esse texto ta tao gostoso de ler que vi aqui ” Na sala com Danuza Leao”
Parabens Roberta!!!
Roberta, texto delícia!
Uma experiência tica e construtiva em todos os ângulos. Um imenso beijo em seu coração & conte sempre com minha leitura em seus artigos.
Pior do que não voltar, é nunca ter perdido. Lindo texto Roberta, o que a vida quer da gente é coragem
Me vi nas suas linhas qd trabalhei em navio foram 5 anos de puro glamour e fora da minha existência e essência que me remendava a minha família humilde e toda atrapalhada …adorei td que li, vc é vc É Roberta especial.
Bj garota vc é luz
A história é ótima, sobretudo por estar tão bem escrita.
Que loucura em amiga, com 16 anos eu posso imaginar a responsabilidade e a coragem de se instalar num país tão diferente como o Japão .
Hoje talvez fosse mais fácil diante da velocidade de nos comunicarmos pelos meios digitais .
Brava gente Brasileira, Parabéns .