Priscilla Ávila: Nada

Palavras boiando no mar da minha consciência: Cansaço, peito, pé, risada, carro, barulho, omelete (?). Preciso de uma única frase que ponha sentido nessas letras pretas que riscam o branco da tela. Busquei inspiração o dia todo, mas ela nunca responde minhas mensagens. Até tentei ligar, algo que costumo fazer só em caso de hipocondria aguda, e nada. Nada. Nada? Nunca imaginei o nada, nadando. Mesmo porque nunca nadei. Repito o som de “nadei” na minha cabeça algumas vezes – Nadei, naaadei, nadeeei – e me vem à mente algo, uma leve inquietação de saber o que alguém que ler isso pensará que eu pensei, porque é isso mesmo: não pensei em nada. NADA. Mas não quero nadar.

Gostinho amargo com traços de tinta azul. Delícia. Estou rodando o café com a caneta bic. Algum neurônio antissocial do meu corpo esqueceu de ir ao Baile da Sinapse encontrar seus outros amiguinhos neurônios e deve estar crendo que a tinta dessa caneta vai me inspirar a escrever. Nada canetinha! Pois ainda não quero nadar.

Uma luz fluorescente se acende no meu cérebro. Vou descrever o que vejo até eu ter que ir almoçar. Vejo Joana, que encobre seu olhar com sua franja vermelha neon, regendo uma orquestra de dedos na tela de seu celular. Lucas sentado com seus fones de ouvido numa leve kundalini. Caio faz cara de peido e parece estar bem concentrado em algum trabalho. Duvido, deve ser diarreia mesmo. Ninguém trabalha as onze da manhã, é a hora que você levanta para tomar café, para fazer xixi, para mentir que o cabelo da amiga está diferente e que achou maravilhosa essa nova cor de esmalte ou para inventar que precisa discutir ‘alguns pontos’ com a pessoa mais distante de você no escritório e já ir pegando a bolsa para sair.

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A ansiedade e a fome já reservaram uma mesa para mim e já estão lá no restaurante mandando mensagens enlouquecidamente, porém a curiosidade sempre foi mais mandona e ela ainda está aqui e me faz passar pela mesa de Caio. No que aquela cara de peido estava ‘trabalhando’? Fui “fazer um xixi” e passear pelo escritório. Tapei o nariz, em caso dele estar apenas com problemas intestinais, e me aproximei da mesa daquele bigodinho concentrado. Planilha aberta na tela do notebook. Dentro apenas a palavra estrelinha desse texto: nada. NADA. Nada Caio! Ou vá cagar.

Por algum motivo inconsciente, ou pela crise, fui almoçar no Sesc com minhas amigas. A fila quilométrica me faz ter tempo para pensar no que escrever, já que eu precisava apenas de alguns metros de criatividade. Até chegar minha vez eu devo imaginar algo, claro! Na verdade, eu deveria é me encher de LSD como alguns amigos fazem, mas a LCD da minha casa já é uma droga bem pesada e eu consumo há muito tempo. Então, nada de overdose. Nada de criatividade. Nada. NADA. E eu nunca quis nadar.

Por algum motivo consciente, ou pela fome, corto a fila e passo por uma janela onde vejo velhinhas nadando. Seus corpos boiam como as palavras em minha cabeça. O barulho dos braços espirrando água me lembra a cachoeira do sítio da minha avó. Saudade da minha avó, saudade da minha família. Trocaria minha TV LCD por um almoço em família. Acho que vou vendê-la e comprar uma passagem. Acho que vou tirar férias. Acho que vou mudar de emprego. Acho também que vou almoçar, apesar de já terem me passado na fila.

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Faltam poucos metros para a comida chegar e não vejo nenhum centímetro de ideia nesse caminho. Já era. Agora só me restam esse frango com brócolis e abobrinha, me despedir das velhinhas que nadam melhor que eu, mesmo que eu nunca tenha nadado, e o nada. NADA. Nada! Agora eu quero nadar.

 

Meaningless day

Timeless thoughts

Useless writing

What do you want to see here?

Images of somebody’s anxiety

Desperate body

Unstoppable fingers

System designed for locking up you

And we keep going back to that

Mindless sharing

Heedless breathing

Brainless feelings

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