Como mencionei aqui mesmo no Portal do Andreoli em minhas críticas dos filmes It: A Coisa e Jogo Perigoso (Gerald’s Game), 2017 definitivamente foi o ano do escritor Stephen King no cinema e na TV. Além do estrondoso sucesso de bilheteria que se tornou It: A Coisa e da ótima recepção de público e crítica de Jogo Perigoso, produção original Netflix, 2017 ainda deu à luz a quatro outras produções envolvendo o nome do Mestre do Horror: o decepcionante A Torre Negra (The Dark Tower), as séries de TV The Mist – horrorosa – e a excelente Mr. Mercedes – enquanto a série The Mist foi cancelada após apenas uma temporada, já foi anunciado que Mr. Mercedes ganhará sua segunda temporada em 2018 – e este sombrio 1922 (EUA, 2017), que assim como Jogo Perigoso, também carrega o selo da produtora Netflix. Vale lembrar que em 2018 teremos também a antologia Castle Rock, série produzida por J.J. Abrams e onde cada episódio promete ser um mergulho no universo literário do mestre King.
1922 é um dos meus contos preferidos do escritor, que foi publicado no livro Escuridão Total, Sem Estrelas (Full Dark, No Stars), lançado em 2010, que ainda conta com mais três outros contos de King: O Gigante do Volante (Big Driver), que ganhou um filme para a TV em 2014 protagonizado por Maria Bello; Extensão Justa (Fair Extension) e Um Bom Casamento (A Good Marriage), que também virou filme em 2014, e foi protagonizado por Anthony La Paglia e Joan Allen. Confesso que após minha leitura do conto 1922, foi difícil tirá-lo de minha cabeça. Trata-se de uma história dura e implacável, cuja verdadeira essência vai muito além do que apenas argumentar sobre a subjetividade de sua porção sobrenatural dos fatos que mostra. É antes de qualquer coisa um conto sobre os efeitos destruidores da culpa e do remorso, que me assombrou profundamente.
1922 é ambientado no ano que dá nome ao conto, e conta a história de Wilfred (Thomas Jane, de O Nevoeiro), um fazendeiro do Nebraska que vive em sua propriedade ao lado da esposa, Arlette (Molly Parker, de Pequenos Delitos, outra produção Netflix cuja crítica você pode conferir aqui no Portal do Andreoli), e do filho adolescente, Henry (Dylan Schmid). Apegado até os ossos às suas terras, Wilfred não gosta nem um pouco quando Arlette herda um enorme pedaço de terra próximo à ferrovia e decide vendê-lo, para com o dinheiro mudar-se para a cidade grande com o filho à tira-colo, mesmo contra a vontade do garoto. Quando Wilfred percebe que não vai conseguir convencer a esposa a permanecer no campo – Arlette sempre odiou a vida na fazenda – ele decide matar a própria mulher com a ajuda de Henry, para que ambos possam continuar a viver suas vidas na fazenda que tanto amam.
Nem preciso dizer que o plano elaborado por Wilfred se transforma em uma tremenda bagunça, o que força o fazendeiro e seu filho a se desdobrarem para conseguir esconder o terrível ato que cometeram. E isso é apenas o começo, já que o jovem Henry parece começar a perder completamente a noção entre o certo e o errado, e o próprio Wilfred começa a ser assombrado pelo suposto fantasma da falecida mulher. Ou seria apenas a imaginação mergulhada em culpa de Wilfred tentando pregar-lhe uma peça? Bem ao estilo do mestre Edgar Allan Poe e seu conto O Coração Revelador (The Tell-Tale Heart), Wilfred embarca em uma jornada capaz de devorar sua alma. Literalmente.
No papel de Wilfred, Thomas Jane mergulha de cabeça. Seu sotaque do caipira de Nebraska, suas cuspidas pelo canto da boca e sua seca compleição física fazem desta a melhor performance da carreira do ator. Disparado. À medida em que a degeneração mental do personagem começa a bater mais forte, Jane imputa uma nova carga em sua interpretação, que dá ao personagem uma aura incômoda que mistura loucura e desconfiança, que abraçam com perfeição a trágica essência de seu Wilfred. A bela Molly Parker também está ótima, em um papel menor mas de essencial importância para dar veracidade aos eventos do filme, que se desenrola lentamente, sorvendo cada pequeno pedaço da psique do protagonista.
Escrito e dirigido de maneira crua e direta pelo jovem e talentoso Zak Hilditch (diretor de um dos melhores filmes que vi em 2013, o drama apocalíptico As Horas Finais), que não se aventura em nenhum momento para longe do conto de King, o filme se estrutura exatamente como a história a qual adapta, dando ênfase a uma aterrorizante imagem em particular, que funciona como o turning point do personagem central e pontua toda a narrativa, e que através das lentes de Hilditch, é perfeitamente efetiva em mostrar como tal imagem poderia levar um homem à loucura. Estas pequenas porém aterrorizantes cenas são introduzidas por Hilditch sempre em momentos-chave da narrativa, e quando elas surgem, batem forte no espectador. Tais sequências de revirar o estômago são um lembrete constante da podridão e da ruína que lentamente se espalham através da vida de Wilfred.
1922 tem alguns problemas de ritmo. O início parece um tanto apressado, durante a longa queda de Wilfred o passo parece se arrastar, e o filme testa um pouco a paciência do espectador neste aspecto. Mas 1922 também carrega a força de uma história simples e direta, em que Hilditch mostra enorme talento para causar tensão e pavor. De atmosfera carregada em tragédia e dor, 1922 é um típico pesadelo extraído da mente de Stephen King, que carrega um tremendo punch que inspeciona os familiares terrores do orgulho masculino ferido, e a fedorenta punição espiritual de um homem que escolheu sua própria danação. O inferno habita na alma.
1922 estreia hoje, 20 de Outubro, no catálogo da Netflix.
Respostas de 13
Que crítica boa sobre o filme heim! Vou assistir, com certeza. Comecei a ler IT há pouco tempo. É o primeiro livro do King que leio, mas já dá para perceber o talento do escritor em causar medo. Isso me ajudou a desenvolver um trecho para o meu livro de terror. Caso queira dar uma lida, responde aqui. Boa sexta!
Obrigado Marcus!
Agradeço pela visita e pelos comments.
Volte sempre ao Portal do Andreoli.
Abraços!
Cara, excelente crítica, pelo jeito é mais um grande acerto de adaptação do King
Muito obrigado pela avaliação e confiança, Carlos Eduardo!
De fato, é mais uma sólida adaptação do trabalho do mestre King.
Obrigado pela visita e pelos comments! Voltem sempre ao Portal do Andreoli.
Abraços!
Matéria super bem escrita. Impressionante como você conhece a fundo tudo sobre King.
Já está. A minha lista de filme a compra ferir.
Parabéns ?
Já está na minha lista de filmes a conferir.
Desculpe-me, o corretor do celular azara tudo.
Obrigado pelos elogios, querida Sibely! O universo do King sempre fez parte da minha vida, desde a infância.
Agradeço MESMO pela visita e pelos comments.
Volte sempre ao Portal do Andreoli!
Beijos.
Excelente crítica, você escreveu tão bem que causa ainda mais vontade de assistir ao filme. Já li o livro O Iluminado, foi assim que iniciei minha paixão pelo King. Vou adquirir o livro Escuridão Total, Sem Estrelas! Tomara que essa fase boa do King no cinema continue.
Muito obrigado pelos elogios, Amanda!!
Agradeço de coração pela visita e pelos comments.
Volte sempre ao Portal do Andreoli! Beijos!
Eduardo Kacic, excelente crítica,realmente V. assistiu o filme e concordo em número, gênero, e grau, performance do personagem pai e filho nota 10, e o filme e ótimo
Claiton, muito obrigado pelos elogios!
Realmente trata-se de um filme impactante, e o Thomas Jane está fantástico.
Agradeço pela visita e pelos comments! Volte sempre ao Portal do Andreoli!
Crítica super bem feita e embasada, parabéns!
Como “mera expectadora”, esperava mais momentos fortes, esperei terror e fiquei com a sensação de drama, apesar disso gostei do filme.
Muito obrigado pelos elogios, Gerciane! Agradeço também pela visita e pelos comments. Volte sempre ao Portal do Andreoli! Bjos.