Crítica: A Chegada (Arrival)

Você sabe o que é um palíndromo? Palíndromos, como explica a personagem de Amy Adams em um dado momento desta enigmática e emocionante sci-fi A Chegada (Arrival, EUA, 2016), são palavras ou frases que podem ser lidas da esquerda para a direita, ou da direita para a esquerda. Podemos dizer que o palíndromo, comparado à frase comum, é como um bilhete de ida-e-volta. Não que o mais novo filme do genial diretor Denis Villeneuve (dos ótimos thrillers Os Suspeitos e Sicario: Terra de Ninguém) seja em si, um palíndromo. Entretanto, para compreender a devida profundidade desta intrigante ficção-científica, é ao menos necessário, entender o conceito.

Até porque, dentro de um conceito palindrômico, por assim dizer, início, meio e fim, não existem propriamente. E o que isso quer dizer, exatamente? Como compreender uma história onde começo, meio e conclusão não ocupam lugares determinados? E é aí que entra a grande chave para que tudo dentro deste A Chegada faça sentido: A atemporalidade. Tudo aquilo que não é afetado pelo passar do tempo. Tudo o que faz parte de qualquer época ou tempo. É somente quando o espectador compreende o cânone da atemporalidade que estrutura a narrativa da produção, que A Chegada passa a fazer sentido, e sua compreensão se torna possível de maneira absolutamente inesquecível e mesmerizante.

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No filme, doze gigantescas naves alienígenas chegam à Terra, e posicionam-se ao redor do globo, estrategicamente. Uma delas, está posicionada na região do estado de Montana, nos EUA, e é para lá que os militares enviam a expert em linguística Louise Banks (Amy Adams, a Lois Lane do universo DC nos cinemas), na expectativa de que, ao lado do cientista Ian Donnelly (Jeremy Renner, o Hawkeye do universo Marvel nos cinemas), ela consiga se comunicar com as criaturas que tripulam a embarcação extraterrestre, e assim descobrir de onde vieram, e principalmente, o que querem. Contudo, Louise não tem muito tempo para conseguir seu objetivo, já que a força militar norte-americana, e as outras nações ao redor do planeta, enxergam a chegada das naves como uma perigosa ameaça.

Como vovó já dizia, “quem não se comunica, se complica”. Pela primeira vez no cinema, uma linguista é a principal esperança da humanidade no advento de uma invasão alienígena. O núcleo central narrativo de A Chegada, concentra-se exatamente no trabalho da protagonista em compreender a complicada linguagem de uma entidade extraterrestre, em nada parecida com qualquer tipo de idioma, vivo ou morto, utilizado ao longo dos séculos no planeta Terra. É este intrigante e fascinante jogo de adivinhação, tradução e comprometimento em decifrar o que tais visitantes pretendem com relação à raça humana, que torna o miolo da produção algo tão hipnotizante, e que prepara tão bem o maravilhoso e emocionalmente esclarecedor terço final do filme.

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Mostrando o mínimo possível, A Chegada entrega pontualmente ao espectador apenas o que ele necessita para prosseguir nos próximos minutos de projeção. A odisseia da forte protagonista do filme em comunicar-se com os seres de outro planeta, que podem ou não estar tramando o fim da civilização humana como a conhecemos, mistura-se com sua própria e dolorosa trajetória pessoal, identificando que mais do que nunca, para compreender os motivos das entidades não-humanas, Louise precisa compreender à fundo sua própria humanidade, e sua importância dentro de um contexto narrativo não-linear. E aqui eu não estou falando do contexto do filme, mas sim o da própria protagonista.

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Esta intrincada correlação equacional, onde concepção de vertentes tão díspares quanto a essência humana, a compreensão da atemporalidade e a necessidade de comunicação, é decifrada com frieza cerebral e entregue com tenra virtude pelo diretor Villeneuve e seu roteirista Eric Heisserer, que baseou seu roteiro no conto “Story of Your Life“, de Ted Chiang. Aliás, A Chegada não poderia ter chegado aos cinemas se não fossem pelas mãos do canadense Villeneuve, diretor que sempre preza pelo minucioso esmero visual e cuidado narrativo. Tenho minhas ressalvas com relação a seu O Homem Duplicado (Enemy, 2013), mas realmente é inegável que o cineasta caminha por uma trajetória profissional livre de erros. A grande surpresa aqui, no entanto, é o belo roteiro do improvável Eric Heisserer, roteirista de obras geralmente sem muito peso ou mesmo qualidade, como os remakes de A Hora do Pesadelo (Samuel Bayer, 2010) e O Enigma de Outro Mundo (Matthijs van Heijningen, 2011), além do recente Quando as Luzes Se Apagam (David F. Sandberg, 2016). Aqui, Heisserer mostra uma maturidade que eu nunca esperaria ver em sua carreira, entregando uma obra praticamente perfeita, tirando um pequeno “arrastar” da narrativa na metade da produção.

Villeneuve ainda destila todo seu expertise visual, em uma produção de aspecto clean, onde os efeitos-especiais são utilizados com parcimônia, mas com um realismo de dar frio na espinha. Toda a sequência envolvendo a primeira imersão humana na nave alienígena é de uma simplicidade aterradora, e assusta e impressiona mais do que qualquer explosão ou efeito-visual excessivamente elaborado. O mesmo a se dizer do que se passa lá dentro, nas sequências em que a comunicação entre ambas as espécies dá o tom da produção. O efeito de tais sequências, com sua tela branca-acinzentada, assume um caráter metalinguístico, como se o espectador estivesse em uma sala de cinema com duas telas de projeção, ambas sob as diretrizes da identificação de suas linguagens. Sejam elas visuais ou sensoriais.

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Existe um aspecto, quase que um deleite, que poucas vezes eu experimentei no cinema. Gosto de pensar neste deleite como uma espécie de “retirar a venda dos olhos”, e pouquíssimas produções foram capazes de tal feito em toda minha vida como cinéfilo. A Chegada foi um destes filmes. Em um determinado momento da produção, quando tudo está tão embaçado aos olhos do espectador, mas ao mesmo tempo tão evidente, tal venda é retirada, e o que chega aos olhos é nada menos do que poesia científica, se é que algo assim sequer existe. Villeneuve e Heisserer revelam a essência de sua história de maneira tão bonita e pertinente, que a produção ganha um caráter testamental, onde o espírito humano confronta-se com a inevitabilidade do futuro, mas nunca isento do livre-arbítrio.

O escopo de reflexões da produção é gigantesco. A Chegada é uma verdadeira e exemplar testificação da imensa indispensabilidade da comunicação, entre nós, humanos, como espécie. Onde estamos agora, e onde quer que viremos a chegar, não chegaremos sozinhos, como indivíduos, mas sim como raça, como humanidade. Para entender o que vem de longe, primeiro entenda o que vem de dentro, compreenda os caminhos do coração e da intuição, e faça de tudo o que encontrar no processo, o seu passaporte para a atemporalidade. Não é segredo para ninguém que o homem morre assim que nasce. Vá, voe, viaje, ame, viva, morra. E em seguida faça tudo ao contrário, de trás para frente. Seja seu único e definitivo palíndromo existencial. Mas, inexoravelmente, faça cada momento, por mais doloroso que seja, valer a pena.

Obs.: Passei a considerar este A Chegada, em caráter pessoal, como parte integrante do que gosto de chamar de “Trilogia da Ficção-Científica Humana e Existencial”, cujos outros títulos são Contato (Contact – Robert Zemeckis, 1997) e Interestelar (Interstellar – Christopher Nolan, 2014). Mais do que viagens à outros planetas, galáxias ou dimensões, são produções cujas jornadas estão destinadas a compreender o infinito microcosmos do indivíduo.

A Chegada está em cartaz nos cinemas brasileiros, e é um dos fortes candidatos ao Oscar 2017.

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Respostas de 8

    1. Obrigado pelo comentário, Gilvani. Não foquei muito nas atuações, até porque achei as mesmas bem discretas. A Amy Adams está ótima, mas achei o Renner um tanto apagado. De qualquer forma, preferi priorizar a questão narrativa do filme, que debate tantos temas, e de maneira tão profunda.

      Obrigado mais uma vez pela visita, e pelo comentário. Volte sempre!

    1. Muito obrigado, querida Karen! Agradeço pela confiança e pelo apoio.

      Fique à vontade para voltar sempre é deixar seus comments!

      Beijão!

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