Há apenas alguns dias aqui mesmo no Portal do Andreoli, publiquei a crítica do drama de época britânico Duas Rainhas (Mary Queen of Scots), um sólido exemplar deste verdadeiro subgênero que aborda os bastidores e as intrigas da realeza britânica ao longo dos séculos. Pela cara deste A Favorita (The Favourite, IRL/UK/EUA, 2018), o filme tinha tudo para seguir na mesma linha dramática do filme citado, porém, trata-se do novo filme do diretor grego Yorgos Lanthimos, especialista em entregar filmes sardônicos, idiossincráticos e no mínimo estranhos desde o início dos anos 2000, como Dente Canino (Dogtooth/Kynodontas, 2009) e Alpes (Alpeis, 2011), ainda trabalhando em seu país natal.
Foi apenas em 2015, entretanto, que Lanthimos chamou de vez a atenção da crítica e do público internacional, com sua “história de amor” distópica O Lagosta (The Lobster), e em 2017 com o indecifrável suspense de humor-negro O Sacrifício do Cervo Sagrado (The Killing of a Sacred Deer, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli). Já é consenso, contudo, de que com este A Favorita, Lanthimos entrega seu melhor filme na carreira, e sem dúvida nenhuma um dos melhores e mais pungentes filmes do ano. O filme levou de arrasto os prêmios de diversos festivais, inclusive o conceituado Festival de Veneza, e já pinta como sério candidato aos Academy Awards. Armado com a marca registrada de seu realizador (a estranheza), e três grandes performances centrais, A Favorita é um típico drama de época britânico, que subitamente mergulha nas águas da loucura e originalidade inerentes do trabalho de seu diretor.
A Favorita transporta sua trama para o início do século dezoito, onde a Inglaterra está em guerra com a França, e a Rainha Anne (Olivia Colman, da série The Crown), ocupa o trono. Anne, que se encontra incrivelmente frágil tanto fisicamente quanto mentalmente, confia completamente em sua confidente, Sarah Churchill (Rachel Weisz, do recente Desobediência) a Duquesa de Marlborough, que por sua vez praticamente governa o país e supervisiona o andamento da guerra, mesmo com os esforços de membros de sua própria côrte para derrubá-la. Entra em cena Abigail Hill (Emma Stone, de La La Land: Cantando Estações), a oportunista prima de Sarah que perdeu seu posto na nobreza devido aos vícios de seu pai, e que procura assegurar para si uma posição dentro do palácio de Anne.
Após alguns tropeços iniciais, Abigail consegue impressionar Sarah, e suas condições de vida melhoram bastante. Não contente, Abigail então começa a maquinar um plano para se tornar a favorita da Rainha, especialmente depois que ela vê o quão íntimo é o relacionamento entre Anne e Sarah. Entretanto, tal plano a coloca em conflito direto com os interesses de Sarah, e quando esta descobre as tramoias de Abigail, a dupla embarca em uma feroz competição para se tornar a verdadeira favorita da Rainha. Nem é preciso dizer que tal conflito não terminará nada bem para a parte perdedora.
Curiosamente, a co-roteirista Deborah Davis começou a trabalhar no roteiro do filme no final da década de noventa, até que finalmente a produtora Ceci Dempsey (que também produziu O Lagosta); o roteirista Tony McNamara (da comédia Ashby, 2015) e o diretor Lanthimos se envolveram no projeto. Em resumo, A Favorita consiste em uma fascinante combinação de comédia bizarra e sátira política, com a exploração de intrigas e maquinações da côrte da Rainha Anne.
No coração de toda a loucura está o triângulo amoroso entre Anne, Sarah e Abigail, uma dinâmica que é engraçada, peculiar e surpreendentemente tocante em iguais proporções. De fato, ao examinarmos a relação entre elas através do microscópio, A Favorita é capaz de oferecer um estudo sobre as políticas do sexo e amor que tematicamente complementam o trabalho de Lanthimos em O Lagosta, mas faz suas próprias observações sobre as dinâmicas do poder e do quão perturbadoras as relações humanas podem ser, de um certo ponto de vista.
Os filmes de Lanthimos certamente contam suas histórias “de um certo ponto de vista”, e esta máxima fica muito clara em A Favorita. O filme é visualmente belíssimo, principalmente graças à fotografia à cargo de Robbie Ryan (Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), que usa e abusa de estilosas tomadas amplas. Como resultado, A Favorita é tão peculiar e desequilibrado quanto sua história transmite, mesmo quando nada particularmente incomum está acontecendo. O que, para ser franco, não acontece com muita frequência. Os requintadamente detalhados cenários e design de produção à cargo de Fiona Crombie (que fez outro trabalho belíssimo na reimaginação de Macbeth, em 2015), e o evocativo figurino da designer Sandy Powell, três vezes ganhadora do Oscar, são outro show à parte, e em conjunto tais aspectos da produção garantem um ar ainda mais único e nada convencional ao filme.
Entretanto, A Favorita seria apenas um cerebral exercício de estilo se não fossem os maravilhosos trabalhos de Colman, Weisz e Stone. Ainda que as duas primeiras já tenham colaborado com Lanthimos antes (no citado O Lagosta), A Favorita dá a elas a chance de brilhar de novas maneiras em seus papéis de Anne e Sarah, respectivamente. Personagens que podem ir de petulantes, perniciosas e cruéis a brincalhonas, sinceras e vulneráveis num piscar de olhos. O mesmo vale para Stone, que já se destacou na carreira misturando comédia e drama, mas que nunca chegou a interpretar uma personagem tão morbidamente engraçada, insegura e problemática como Abigail. A Favorita consiste antes de qualquer coisa em um show de Colman, Weisz e Stone.
Tendo tudo isso em mente, entretanto, vale a pena mencionar que no final das contas A Favorita é um típico exemplar do cinema de Lanthimos, e isso vale para o bem e para o bem… não tão bem. Por mais impressionante que seja a qualidade visual e as interpretações do elenco, a abordagem narrativa do diretor e seu moroso senso de humor não agradará a todos. Os métodos do diretor se refletem em seu melhor em A Favorita, o que em comparação, faz com que os momentos em que sua abordagem não funciona tão bem, acabem chamando bastante atenção. Ainda assim, a produção é sem dúvida um dos trabalhos mais acessíveis de Lanthimos (certamente muito mais do que Cervo Sagrado), mas continua sendo um filme de Lanthimos, o que pode fazer com que alguns espectadores se sintam frios e frustrados com a pegada nada convencional do cineasta. Por estas razões, é um tanto difícil recomendar A Favorita para qualquer um sem algumas reservas.
Por outro lado, para aqueles que adoraram os filmes anteriores de Lanthimos (meu caso), A Favorita é um prato cheio. Nenhum dos filmes que estão se posicionando para a temporada de premiações que está para chegar e que eu tive a sorte de poder conferir, tiveram a pachorra de tripudiar tanto das fórmulas e dos gêneros como este. A Favorita não é seu filme de tarde de domingo. É aquela sessão maldita de sexta-feira à noite, só que com verniz de Oscar por todos os lados.
A Favorita estreia nos cinemas brasileiros no dia 24 de janeiro de 2019.