Crítica: Cam (2018)

Cam

É impressionante a rapidez com que o subgênero do “Internet Horror” cresce e ganha novos exemplares. Thrillers que utilizam o artifício do suspense no mundo virtual como os recentes Buscando… (Searching, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli) e Profile, dirigido pelo russo Timur Bekmambetov, acabam de ganhar companhia com mais este exemplar da categoria, um terror ao estilo David Lynch sobre uma “Cam Girl” em crise. Definitivamente um dos melhores títulos do Cine Phenomena Festival 2018, Cam (EUA, 2018) é um estranho e perturbador suspense sobre nossas personas online.

Apesar do citado subgênero já conter um bom número de exemplares em seu portfólio, Cam é a primeira produção da vertente que aborda o horror existencial e muito real de ser “trancado” fora de seu perfil online. Dirigido pelo estreante em longas Daniel Goldhaber, o filme também aborda outros tipos de crises do mundo digital, mas este esperto e enervante thriller é mais eficaz quando traça os incômodos e sombrios relacionamentos que mantemos com nossos próprios perfis online.

É normal o indivíduo tentar construir para si mesmo uma identidade nas redes sociais. Tentar parecer melhor e mais desejável do que é em carne e osso. Mas o que acontece quando a projeção de quem somos começa a assumir a realidade? O que acontece quando nossos avatares assumem suas próprias vidas? Como dizia o grande escritor da contra-cultura Kurt Vonnegut, “Nós somos o que fingimos ser, logo, devemos tomar cuidado com o que fingimos ser.” Vonegutt estava escrevendo sobre propagandistas nazistas, mas suas palavras também podem ser aplicadas para cam girls que transmitem-se ao vivo constantemente em salas de bate-papo repletas de estranhos excitados.

Estas são ideias concebidas já antes do advento das mídias sociais, mas Cam empresta à elas uma nova vida ao torná-las hiper-literais. Mesmo quando a história ganha pinceladas do sobrenatural, o filme continua realista e mundano o suficiente para evitar que se afunde em uma parábola ao estilo Black Mirror viajada na maionese. E no centro de tudo isso está Alice, uma garota na casa dos vinte anos viciada em internet.

Interpretada com obsessiva perfeição por Madeline Brewer (da série The Handmaid’s Tale), à partir do roteiro de Isa Mazzei, baseado em suas próprias experiências vividas através da webcam, Alice (que performa nas câmeras como “Lola”), é uma bem sucedida cam girl às portas do relativo estrelato. Dinheiro não é exatamente um problema para ela, uma vez que seus fãs já bancaram para ela uma bela casa no subúrbio, além de todo o delivery de sushi que uma garota poderia querer. Entretanto, Alice está preocupada com suas estatísticas. Ela está focada em subir os números do popular site que domina sua vida, e não vai parar por nada enquanto não conseguir chegar ao topo. Para alavancar sua popularidade, Alice tem uma peculiar estratégia: ludibriar seus espectadores com sangrentos e elaborados falsos suicídios (!).

Não se pode negar que Alice carrega o senso de competição no sangue, mas sua compulsão pelo trabalho parece mais impulsionada pelo sentimento de reafirmar sua própria existência do que a conquista de seus objetivos profissionais. Ela está convencida de que uma vida que é assistida é uma vida pela qual vale a pena lutar, e cada “gorjeta” que ela recebe de um fã é um lembrete de que ela está viva. E mesmo antes das coisas saírem totalmente do controle, o espectador já tem a impressão de que para Alice, morrer ou fazer um log off já não tem nenhuma diferença.

Entretanto, as coisas tomam um rumo inexplicável quando numa manhã, após um show extremo transmitido através da cam para um grupo de espectadores degenerados, Alice acorda e descobre que ela não só foi excluída de sua conta, como Lola tomou seu lugar e continua transmitindo ao vivo. Trata-se de um pesadelo tão aterrorizante quanto inexplicável. Alice não foi apenas hackeada. Ela foi substituída.

Tal reviravolta transforma o filme em uma jornada ao estilo do diretor David Lynch, mas Cam já teria sido extremamente eficiente mesmo sem essa guinada em sua trama. Goldhaber, resistindo ao ímpeto de confinar todo seu filme à tela de um computador (como os citados thrillers Profile e Buscando…), cria uma crível atmosfera de transmissão ao vivo. A câmara onde Lola transmite seus shows é banhada de um rosa néon que transforma tudo que toca em algo absolutamente sinistro, especialmente o urso de pelúcia gigante no canto do quarto. Cada cena parece ter sido arrancada de algum livro de fotografias completamente pervertido.

Cam é extremamente bem concebido: Os fãs anônimos de Alice, digitando com uma mão enquanto a outra faz exatamente aquilo que vocês estão pensando, falam com ela por trás da segurança de suas telas de computador, e fica a sensação de que a qualquer momento eles podem simplesmente mudar de canal para dar uma espiada no que alguma outra garota está fazendo. Lola pode ter o controle, mas seus espectadores tem o poder. É uma dinâmica instável, para dizer o mínimo, e o roteiro de Mazzei garante que cada gorjeta e gif pervertido chegue aos olhos do público. A perversão chega ao ápice quando Lola se encontra com dois de seus fãs mais dedicados, ambos incorporando de maneira assustadoramente real as manifestações de suas respectivas frustrações e fúrias sexuais. Vale um adendo para elogiar os desconhecidos Michael Dempsey e Patch Darragh por darem o máximo em papéis tão sujos e ingratos.

Cam carrega uma aura de snuff film, doente demais para ser sexy. E as coisas ficam ainda mais deturpadas uma vez que o filme revela mais sobre a vida de Alice. Não há muito para ser visto nos bastidores, apenas uma mãe (a ótima Melora Walters, de Boogie Nights: Prazer Sem Limites e Magnólia, ambos dirigidos por Paul Thomas Anderson), que não sabe o que sua filha está tramando, e um irmão mais novo que provavelmente sabe demais. Os únicos amigos de Alice parecem ser as outras cam girls com as quais ela conversa pelo Skype, mas o filme está mais interessado em suas rivais (a atriz Samantha Robinson, do hit cult The Love Witch, é um verdadeiro deleite no papel de uma delas).

Cam é uma experiência cativante e assustadora, que apresenta uma “heroína” nada convencional enfrentando um dilema ainda mais indecifrável. A mão firme de Goldhaber garante que as coisas permaneçam fascinantemente macabras do início ao fim, e a performance de Brewer é poderosa o suficiente para subverter o roteiro em torno da utilização das web cams e do negócio por trás delas. Trata-se de uma indústria que depende de clientes que acreditam que realmente conhecem as pessoas as quais eles obsessivamente assistem online, e Brewer interpreta sua Alice como alguém que não consegue enxergar a si mesma claramente (ou que está tão determinada a ser vista que acaba perdendo o tracking de todo o resto), o que nos possibilita conhecê-la melhor do que ela conhece a si mesma.

Consequentemente, Cam é capaz de refletir o estranho labirinto de espelhos no qual todos nos perdemos quando estamos logados online, e é também uma produção capaz de transmitir de maneira visceral o pânico ao se tentar encontrar uma saída. A solução definitiva que Alice elabora é excessivamente simples para ser dramaticamente satisfatória, mas é crível o suficiente para colocar medo em quem utiliza as redes sociais. Mesmo que apenas por alguns poucos minutos.

Cam estreia no catálogo da Netflix no dia 16 de Novembro, e como mencionei acima, a produção também foi exibida no Cine Phenomena Festival deste ano, do qual tive a honra de ser membro do júri oficial.

7 respostas

      1. Adorei a sua explicação atraves dela consegui entender algumas coisas mas memso assim era ela mesmo
        Q qdo estava normal em casa e se via se assustava com as coisas q foi capaz de fazer ?
        Gente não sei!! Quem é o hacker q a roubou!!
        Rs

  1. Sinceramente, eu odiei o filme, o filme retrata como é a vida de camgirl(na parte dos segredos etc) mas retrata de modo muito fake como as coisas funcionam, mostrando que é rios de dinheiro sendo que não é, e não mostrou um final auto explicativo. Deixando uma porrada de duvidas, se na verdade a alice que tava ficando doida, se existia um espirito, ou se era realmente uma pessoa diferente com o mesmo rosto dela, como foi mostrado que a garota lá tinha falecido a muito tempo. Fora que existe uma regra em que as camgirls não devem ter contato com os telespectadores, não devem sair e se encontrar de maneira alguma. Pois isso é muito perigoso. Eu sinceramente me decepcionei com o filme pois achei que ia ser sobre sequestro e suspense, mas na verdade pareceu mais um filme de terror que dessa vez realmente conseguiu mexer com o psicológico. Diferente de filmes como amizade desfeita 1 e 2. E o final que ela tenta dnv eu não entendi nada e nem a proposta daquilo.

  2. Eu tbm estou aqui ?
    Ela ficou doida!
    Ou roubaram a conta dela, ele perde o acesso a senha, os clientes dela vê tbm duas lolas a cena no carinha se masturbando no banheiro vendo a Lola ao vivo no motel aí ela começa a falar com ela e o fake dela não a reconhece são essas cenas q nos os dão quase certeza q alguém roubou, mas qdo vamos na internet procurar se alguém entendeu o filme , eles dão uma explicação q era ela mesma o tempo todo ou q era só pra mostrar como uma pessoa perde a identidade qdo usa demais a internet a sei lá muito confuso
    Se era ela mesmo como ela conseguiu trazer a menina morta pra fazer o libe ao vivo com ela ? Não sei adorei o filme de qualquer forma mas não sei qual
    Desses finais acredita se era ela mesmo ou se ele endoido !!!

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