Quem me conhece e segue meus textos já há algum tempo, sabe de minha admiração pelo escritor americano Stephen King, disparado meu autor favorito desde que me conheço por gente. Fiel leitor das obras do Mestre do Horror desde os dez anos de idade, posso dizer que conheço um pouquinho sobre o Mestre: King foi o tema de uma de minhas palestras para o Conacine: o Congresso Nacional de Cinema Online; eu já li todos seus livros, e assisti a todas suas adaptações para o cinema e TV. Inclusive, aqui mesmo no Portal do Andreoli eu já tive a oportunidade de escrever sobre algumas das adaptações mais recentes do Mestre King para as telas, como Jogo Perigoso (Gerald’s Game, dir. Mike Flanagan), 1922 (dir. Zak Hilditch), e It: A Coisa (It, dir. Andy Muschietti), todos lançados em 2017.
Dentre tantas obras que me marcaram dentro do universo do Mestre King, uma delas tem um lugar especial em meu coração. Estou falando de Cemitério Maldito, cujo livro lançado em 1983 ganhou uma versão para o cinema em 1989 dirigida por Mary Lambert, e foi justamente esta versão cinematográfica que me apresentou ao universo de Stephen King. O filme original foi meu primeiro contato com qualquer obra relacionada ao escritor, e me lembro bem, do alto dos meus dez anos de idade, de terminar o filme me sentindo completamente apavorado e ao mesmo tempo fascinado com o que tinha acabado de ver. Se aquilo era Stephen King, então eu queria mais.
O curioso quando falamos de Cemitério Maldito, tanto do livro quanto do filme, é que não se trata de algo particularmente revolucionário ou mesmo original. Histórias sobre mortos que voltam à vida, mesmo na época em que o livro foi escrito, já estava longe de ser novidade dentro do gênero, mas era a tamanha capacidade de King em explorar os medos mais profundos de seu leitor que fez do livro um dos mais amados pelos fãs do escritor, e a mesma eficiência na exploração do medo permeia toda a versão para o cinema da diretora Mary Lambert, que manteve o tom brutal, violento e emocionalmente desolador do livro.
Para minha satisfação e também dos fãs desta emblemática obra de King, esta mesma sensação se materializa também nesta nova versão de Cemitério Maldito (Pet Sematary, EUA, 2019), que além de replicar os melhores aspectos do livro e do filme original, ainda capricha naquela inerente veia de maldade que fez do conto um dos mais lembrados pelos admiradores do horror. Inclusive, me arrisco a dizer que o filme dos diretores Dennis Widmyer e Kevin Kölsch (do horror cult Starry Eyes, 2014), não só é uma sólida adição à longa lista de filmes baseados no trabalho de King, como já se coloca entre as melhores com toda certeza.
Assim como na história de King e no filme de 89, Cemitério Maldito é centrado na família Creed, onde o Dr. Louis (Jason Clarke, de O Primeiro Homem e Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi), e sua esposa, Rachel (Amy Seimetz, de A Rota Selvagem, cuja crítica também está disponível aqui no Portal), decidem deixar a cidade grande para trás e partir para o interior do Maine com o objetivo de passarem mais tempo com as crianças, Ellie (Jeté Laurence), e o pequenino Gage (interpretado pelos gêmeos Hugo e Lucas Lavoie). O que eles não sabem, é que sua nova propriedade se estende muito além de suas expectativas. A terra inclui um cemitério de animais que tem sido usado por gerações, além de um outro local, mais distante, que tem a habilidade de trazer os mortos de volta à vida. Mas como o próprio slogan do filme prega, “às vezes, a morte é melhor”.
O roteiro de Jeff Buhler (que derrapou no recente Maligno, cuja crítica também está disponível aqui no Portal do Andreoli), se supera em diversos aspectos. O material-fonte mergulha fundo na dor do luto, nas cicatrizes do trauma, e nas impossíveis perguntas em torno de nossa própria mortalidade, e Buhler, Widmyer e Kölsch conseguem abraçar tudo isso. Cemitério Maldito é altamente envolvente, mas não espere os manjados jump scares do gênero seguidos de algum tipo de alívio cômico. Trata-se de um pesadelo familiar profundo e sinistro, repleto de camadas, e que sim, também traz alguns sustos, mas também uma significativa quantidade de complexidade que transforma estes sustos em algo muito mais assustador e duradouro.
O coração de Cemitério Maldito é a família Creed, e o fenomenal elenco é fator chave para o sucesso da produção. É abundantemente claro desde o início que trata-se de uma família amorosa, mas há certas interferências em seus relacionamentos que fazem suas vidas soarem bagunçadas, e por isso mesmo, mais reais. Estas interferências são extremamente bem costuradas na narrativa, à medida em que as coisas vão ficando cada vez mais perigosas. Jason Clarke prova ser um sólido protagonista, alternando entre a natureza prática de seu personagem e seu comportamento quase maníaco de quando as coisas começam a degringolar em sua família.
Mas os destaques da produção pertencem à parcela feminina do elenco, Jeté Laurence e Amy Seimetz. Se você acha que já viu o suficiente de crianças sinistras no cinema, é porque não viu Laurence em ação ainda. A jovem atriz captura os estereótipos do gênero, os enriquece e transforma sua Ellie em uma força inesquecível e tremendamente apavorante. E já era hora de Seimetz ter seu nome no topo de uma produção para o grande público. Dona de um currículo extenso, como atriz e diretora, Seimetz amplifica sua personagem com tamanha paixão e intensidade que sua Rachel domina cada uma das cenas em que aparece, externando a completa dedicação à sua família e enfim, também seu desespero quando o puro pesadelo começa a consumi-la.
Quem também aparece muito bem (e isso já era de se esperar) é o espetacular veterano John Lithgow (Interestelar, Risco Total), no papel do vizinho dos Creed, o curioso porém gentil Jud Crandall. A maneira com que o filme estabelece a amizade entre Jud e Louis é ótima, assim como a trágica relação de co-dependência que se desenvolve entre eles. De maneira similar, Victor Pascow (Obssa Ahmed), um jovem paciente de Louis que vem a falecer de maneira trágica, também é envolvido com boa química na história (especialmente no incrível trabalho de maquiagem em sua figura), e sua relação com Louis também funciona para o bem do filme. Faltou apenas um pouco de clareza adicional em suas ações, o que teria tornado seu envolvimento mais impactante.
Mas este pequeno criticismo soa até inconsequente tamanha a eficiência do horror apresentado neste Cemitério Maldito. O visual do filme é impactante, e Widmyer e Kölsch com certeza sabem criar um clima. A fotografia à cargo de Laurie Rose (dos recentes Stan & Ollie e Operação Overlord) é excelente, com alguns truques de câmera que funcionam excepcionalmente bem, especialmente nas sequências mais violentas onde impera a tensão. A maneira com que a cena que retrata o fatídico grande acidente do filme é capturada, é nada menos do que épica e definitivamente traumatizará a nova geração que não conhece a história de King. Outro destaque é o score musical do veterano Christopher Young (A Entidade, Arraste-me Para o Inferno), que soa cru, carnal, e que é utilizado em perturbadores acordes mais altos nos momentos-chave da produção.
Este novo Cemitério Maldito evoca o exato sentimento que Widmyer e Kölsch sabiam que queriam alcançar com sua adaptação, e o filme exala comprometimento e confiança por parte da dupla. Eu os aplaudo por sua visão e dedicação, assim como aplaudo o estúdio (Paramount) por deixá-los livres para trabalhar de acordo com suas convicções. Ainda assim, este remake não se preocupa muito em agradar a plateia em geral. Assim como o material-fonte, trata-se de um filme com uma incômoda veia de maldade que irá gelar a espinha do espectador, uma vez que crava suas garras, injeta a ameaça e a incerteza da morte em nossas veias, e então nos desafia a segurar firme enquanto seus personagens são impiedosamente consumidos pela perda, o desespero e a violência.
Cemitério Maldito estreia nos cinemas brasileiros no dia 09 de Maio.