Quando a sessão deste Coringa (Joker, EUA/CAN, 2019), terminou, a sensação que tive foi muito semelhante à de quando terminei de assistir Batman: O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), até hoje a melhor adaptação de uma história de super-herói para o cinema. A questão é que, quanto mais tempo se passava do momento em que vi o filme de Christopher Nolan no cinema, mais o filme crescia no meu conceito. Com este Coringa, entretanto, tem acontecido um pouco o contrário; quanto mais eu penso no filme, mais conflituoso eu me sinto em relação à ele. O Coringa do diretor Todd Phillips é ousado e empolgante, mas também excessivamente confuso e moralmente ambíguo. E talvez seja exatamente isso que o diretor procurava entregar.
É claro que o hype está lá em cima. O Rotten Tomatoes (que de repente virou a referência para todos que não conseguem discorrer sobre um filme de alguma forma que não seja através da porcentagem de aprovação), classificou o filme na casa dos 98% de aprovação (hoje já está em 84%), e a grande maioria das mais de 300 críticas que foram ao ar logo após a exibição do filme no Festival de Veneza, elogiaram a produção efusivamente. Então estaria eu indo na contramão e dizendo que o filme é ruim? De maneira nenhuma! A questão é que Coringa tem algumas falhas que parecem não terem sido realmente observadas pela maioria da imprensa especializada, talvez devido à empolgação. Como eu disse anteriormente, se eu tivesse escrito esta crítica logo após minha sessão do filme, minha análise talvez fosse outra. Minha sensação sobre o filme hoje é muito semelhante à minha opinião sobre o recente Era Uma Vez em Hollywood; o novo filme de Quentin Tarantino, que tampouco pode ser considerado ruim, longe disso. Mas uma segunda análise em cima de ambos os filmes revela mais pontos negativos do que positivos, diferente do citado Cavaleiro das Trevas, por exemplo, que só melhora a cada nova visita.
Sem dúvidas, Coringa é o filme mais original e transgressor do cinema de “super-heróis” da história. Contudo, é também uma origin story que bebe demais da fonte de dois filmes em particular: Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (The King of Comedy, 1982), ambos dirigidos pelo mestre Martin Scorsese. Agora, o defensor mais ferrenho de Coringa dirá que o filme é uma homenagem aos filmes citados, ao cinema de Scorsese e até ao protagonista de ambos, o grande Robert De Niro, que inclusive tem um papel de destaque aqui. A questão é que basta um olhar mais cuidadoso para perceber que Phillips não somente homenageia tais filmes, como os copia descaradamente sob uma roupagem nova (apesar da mesma ambientação no início dos anos 80), e amparado por um protagonista maior que o próprio filme. Tanto em termos de personagem quanto de ator, o Coringa de Joaquin Phoenix é simplesmente um assombro.
Coringa é a epítome do cinema de super-heróis para adultos; não há ação, nenhum collant colorido e pouquíssimos efeitos especiais. Tudo é tão sombrio e sério que até para os padrões DC no cinema a coisa é fora da curva. Para quem considerava Watchmen a obra mais adulta do selo no cinema, ooops, pense de novo. A própria essência do filme passa longe de beber na fonte de qualquer arco de super-heróis (e vilões) dos quadrinhos, uma vez que Coringa é essencialmente um filme sobre um psicopata narcisista que prefere matar por uma boa gargalhada do que permitir ao mundo que o continue tratando como lixo. Phillips, cuja trajetória no cinema resume-se basicamente à trilogia Se Beber não Case (The Hangover, que eu particularmente adoro), tenta inserir também uma atmosfera política em seu filme, atacando o capitalismo e a desumanização do indivíduo diante de seu status na pirâmide social. Phillips conseguiu a façanha de realizar uma obra tão visionária quanto insana, repleta de incoerência moral e que funciona exatamente como seu protagonista, um inexorável agente do caos.
Phoenix entrega uma performance hipnótica e inimitável (mais uma) no papel de Arthur Fleck, uma infeliz criatura de Deus que vive nas margens de uma Gotham City cuja podridão já toma conta de tudo. A cidade é dominada pela corrupção, onde o bilionário Thomas Wayne (Brett Cullen, de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge) concorre ao cargo de prefeito e clama que ele é o único capaz de ajudar a população mais desfavorecida do local. A mãe de Arthur, Penny (a ótima Frances Conroy, da série A Sete Palmos), insiste em chamar seu filho de “Happy”, uma vez que ela enxerga a condição do filho como uma evidência de que ele “foi colocado no mundo para espalhar riso e alegria”. É claro que não é bem assim; Arthur é um típico Pagliacci, que usa uma decadente fantasia de palhaço em seu emprego medíocre, e que para piorar, sofre de uma condição clínica que resulta em incontroláveis episódios de riso histérico. Se o mundo tivesse uma piada para contar, Arthur seria ela.
Enquanto que o Coringa de Christopher Nolan era uma verdadeira força da natureza, o Coringa de Phillips não poderia ser mais humano; todas as suas excentricidades são diagnosticadas de maneira explícita, e ainda que tal clareza tenha suas virtudes, também possui seus defeitos. Phillips apaga a linha que separa fantasia e realidade da mesma maneira que Scorsese fez em O Rei da Comédia, mas ele insiste em voltar e traçar novamente a linha entre fato e ficção. Esta é uma das várias maneiras que Coringa posa como um filme digno de uma reflexão séria, mas que não tem coragem para se comportar como um. Phoenix, entretanto, está acima disso tudo. Uma vez que Arthur dá lugar ao Coringa, o personagem se torna completamente imprevisível. A essência da performance de Phoenix está justamente na diferença crucial entre o seu palhaço e o interpretado por Heath Ledger em 2008: se o Coringa de Ledger brilhava por não ter nenhuma origem definida, o Coringa de Phoenix é o que é devido à todas as circunstâncias destrutivas em torno de Arthur.
Arthur almeja ser um comediante, mas ele está muito isolado em seu próprio mundo para entender o que exatamente faz as pessoas rirem. Em seu diário, ele escreve sobre sua condição, e qualquer um que tenha um coração simpatiza com as palavras de Arthur, e pessoas com uma história similar provavelmente se identifiquem com ele. Arthur é uma pobre alma, não um pária, e Phillips está enganado se ele acha que o restante do filme transforma seu personagem em um. Tanto numa escala pessoal quanto política, Coringa defende o mote de que as coisas neste mundo precisam ficar muito, muito ruins até que as pessoas se incomodem o suficiente para começar a mudá-las. E o trauma é transformador: Arthur não chega ao fundo do poço até que três yuppies bêbados o ataquem no metrô, e ele os acaba matando em legítima defesa. De repente, os jornais inundam a população com as reportagens de um palhaço não identificado que assassinou três jovens executivos da Wayne Enterprises, e a tensão entre os abastados e os desfavorecidos de Gotham entra em erupção. A cidade precisa ser salva, mas Bruce Wayne ainda é apenas uma criança. Alguém precisa assumir a missão.
Não que Arthur tenha qualquer interesse em liderar uma causa. Ele é tudo menos um herói. Tudo o que ele quer é que o mundo se olhe no espelho, como ele penosamente tem de fazer todos os dias. O Coringa de Arthur é o sucessor de Travis Bickle, e primo em segundo grau de Robert Pupkin de O Rei da Comédia (filme que, volto a repetir, Coringa acompanha quase como um remake). O Rei da Comédia é um filme sobre um homem sem talento que é convencido de que é especial. O filme de Phillips, ao contrário, é sobre um homem talentoso que coloca em sua cabeça de que ninguém mais é. Tal perspectiva permite a Phillips falar com as pessoas em nosso mundo que estão predispostas a acreditar que Arthur é um modelo a ser seguido. E isso é perigoso: Tal abordagem moralmente confusa revela um filme que vê uma vingança pessoal como faísca para revolução política; há uma diferença fundamental entre contar uma história desta natureza na forma de um filme de arte como Taxi Driver, e contar a mesma história utilizando a linguagem universal de um filme de super-herói que chegará em peso aos cinemas de todo o mundo. Pois por mais séria e polêmica que seja a abordagem de Phillips ao material, Coringa sempre será em essência uma história sobre um criminoso que se veste de palhaço e combate um bilionário vigilante que se veste de morcego. And that’s it.
Coringa é basicamente um filme sobre como pessoas ferradas podem existir em um mundo mais ferrado ainda. Um filme que insiste em mostrar o pior lado do ser humano. Arthur não é descontrolado e perigoso porque Gotham é uma cidade corrompida, e Gotham não é uma cidade corrompida porque pessoas como Arthur são descontroladas e perigosas. Ricos ou pobres, os bandidos são os únicos que pensam desta maneira. Ainda assim, por décadas a fio, Batman e Coringa continuaram a reinventar um ao outro, porque estamos todos presos em uma interminável gangorra de heróis e vilões, de ordem e caos. Phillips, ele próprio preso entre a reinvenção de um gênero e a criação de um disfarce barato para contar a mesma origin story que já vimos mais de mil vezes, precisa que seu Coringa seja luz e escuridão, o yin e o yang, o único homem são em um mundo enlouquecido.
O resultado é uma obra de entretenimento para as massas impecavelmente construída (a fotografia, os figurinos e o design de produção são absolutamente espetaculares), que quando chega à sua conclusão, termina por não ser o filme inovador que almeja ser. Mas é bom o suficiente para ser perigoso, e ambíguo o suficiente para causar um rebuliço moral dentro do espectador. Phillips e Phoenix colocam o mundo de ponta-cabeça e levam todos à loucura no processo. Para o bem e para o mal, é exatamente o filme que o Coringa gostaria de ver.
Coringa estreia nos cinemas brasileiros no dia 03 de Outubro.
Respostas de 13
Ótima crítica, diferente dos demais que já li por ai, como nunca vi rei da comédia fiquei meio avuada rs, tentar até ver pra fazer uma análise mais completa até assistir o filme.
Obrigado pelas palavras e pela visita, querida Luana.
Realmente seria interessante assistir ao O Rei da Comédia para entender melhor a experiência deste Coringa.
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Eu li VÁRIAS críticas (muitas gringas) a respeito de como o filme trata da “ambiguidade moral” e que isso, talvez, deixasse o filme “irresponsável”. Daí pensei: será que isso não foi feito de maneira… proposital? Como você mesmo disse, este é um filme que o Coringa gostaria de ver.
Bem por aí, Gabriel. É um filme de natureza incendiária. A cara do Coringa! Hehe…
Obrigado pela visita e pelos comments!
Legal, gostei da leitura e devo assistir tanto Taxi Driver quanto O Rei da Comédia. Obrigado!
Show! Obrigado pela visita e pelos comments!
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Excelente crítica como outras do site . Foi devido ao site que fui ver o novo “ Cemitério Maldito “ e não me arrependi . O “ Coringa “ parece ser algo meio enlouquecedor mesmo, como tudo que vem do personagem . E quem não garante que foi o próprio Coringa que financiou o filme com alguma sugestão hipnótica que levará o mundo ao caos ? Afinal ontem foi o Batman Day, e o Coringa não vai deixar passar em branco … Basta um dia para enlouquecer alguém, segundo a Piada Mortal … quem sabe baste um filme para transformar nossa vida, como tantas vezes acontece ?
Hehe… muito interessante este seu raciocínio, Luiz! Realmente é um filme aberto a todo tipo de interpretação. Com relação ao Cemitério Maldito, acho um filme injustamente malhado pelo pessoal. O filme está sendo criticado apenas pelo fato de ser um remake.
Mas agradeço a confiança e os comentários, Luiz.
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Grande abraço!!
Pelo que entendi, sem muita analise de minha parte, este filme é uma homenagem ao coringa , como se fosse uma autobiografia?kk Seria a versão Coringa dos fatos? Alias, boa critica! Ansioso por ver o filme!
É sem dúvida uma abordagem bastante diferente do personagem, Rodrigo. Mas sem dúvida é um tremendo filme. Bastante polêmico.
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Grande abraço!
Partindo de uma perspectiva nietzschiana, poderíamos dizer que o Coringa, nesse filme, está além do bem e do mal?
É bem esse o ponto, Lucas. Chamar este Coringa de mero vilão não faz justiça ao personagem ou ao filme.
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Que ótimo encontrar um contraponto aos comentários praticamente unânimes em favor desse filme.
Saí da sala de cinema me sentindo “a estranha” por não ter tido a mesma reação positiva e de exaltação que a crítica (?) mainstream teve.
Parecido com o que senti quando assisti Bacurau, embora considere esse mais complexo do que a versão atual do Coringa.
Fiquei
incomodada com as muitas soluções rasas e/ou ambíguas desta versão.
O sujeito é um psicopata delirante, mas só manifesta sua psicopatia, em plena meia idade, após sofrer uma sucessão de, vamos dizer, injustiças (incompreensões para com sua doença mental, sacanagem do colega, agressões físicas, etc.). Na sequência, descobre-se filho (adotado!) de uma esquizofrênica que lhe impingiu abusos de toda a sorte em sua infância.
Histórico de abandono duplo (ou triplo)- pais biológicos desconhecidos, ausência de figura paterna, mãe abusadora…, bullying, fracasso profissional,doenças mentais, tudo isso em um contexto de injustiças sociais. Puxa! É de se admirar que não tenha pirado antes.
Aí, quando isso acontece, se torna ídolo das massas sofridas, com a qual há, sem dúvidas, muitos elementos sociais em comum.
Mas a aproximação e amálgama entre problemas pessoais (dentre os quais, a doença mental) e os problemas sociais é feita de forma perigosa e rasa. A subjetividade do personagem, formada por uma miríade de elementos complexos, o tornam um ser denso, profundo, “demasiado humano”, como o qual encontramos, em algum momento, pontos de identificação. Por outro lado, o pano de fundo (contexto social) é binário: pobres X ricos.
E os pobres e explorados o tomam como ídolo, por ter assassinado brutalmente 3 sujeitos ricos. Simples assim. Daí para se concluir que a revolta social está no mesmo nível de insanidade do Coringa com o qual, aliás, já estabelecemos mais empatia do que para com “a turba” revoltada e violenta, é um passo.