Crítica: Docinho da América (American Honey)

Filme de abertura do Festival de Cannes 2016, onde foi laureado com os prêmios do júri e do júri ecumênico de Melhor Diretora para a britânica Andrea Arnold (O Morro dos Ventos Uivantes, 2011), que também foi indicada para a Palma de Ouro no mesmo festival; vencedor do British Independent Awards em quatro categorias: Melhor Filme Independente, Melhor Diretora, Melhor Atriz (para a estreante Sasha Lane) e melhor fotografia; e indicado a diversas categorias no Independent Spirit Awards, este Docinho da América (American Honey, Reino Unido/EUA, 2016), é de fato uma das mais reveladoras e pungentes experiências cinematográficas a abordar o desequilibrado universo da juventude norte-americana e mundial nos dias atuais.

Ao contrário do famigerado Kids (Larry Clark, 1995) e do recente White Girl (Elizabeth Wood, 2016), que coloca seus personagens centrais um tanto que à parte da realidade marginal que os rodeia, Docinho da América retrata sua protagonista e os coadjuvantes que a cercam como um produto do meio onde vivem. Em uma sociedade economicamente arruinada, tanto financeiramente quanto moralmente, a diretora e roteirista Andrea Arnold situa seus jovens em uma jornada sem destino certo, exatamente como o atual momento da juventude cotidiana, que faz suas escolhas para onde o vento sopra.

hero_american-honey-tiff-2016

O filme apresenta ao público a adolescente Star (Lane), que decide abandonar uma vida de miséria e abuso sexual na casa de seu padrasto em Oklahoma, e acaba aceitando uma proposta de emprego como vendedora de assinaturas de revistas, no esquema de porta-em-porta, viajando numa van ao lado de um grupo de jovens, que assim como ela, abandonaram uma vida de lares desfeitos e nenhum apego emocional ou afetivo.

Docinho da América situa toda sua narrativa nesta longa jornada da protagonista através do meio-oeste americano, passando por estados como Nebraska, Kansas, Missouri e Iowa, onde o roteiro sempre enfatiza a falta de estrutura em todas estas localidades, no que diz respeito ao cuidado com as crianças e os jovens. Ao longo da viagem, Star passa por um ainda que tardio processo de amadurecimento, mesmo que este venha à duras penas em diversas passagens da produção.

É extremamente interessante a maneira com que Arnold retrata a convivência de Star e do grupo de jovens do qual ela passa a fazer parte. Apesar da convivência atribulada e do constante abuso de substâncias como as drogas, o álcool e também a banalização do sexo, o grupo é uma grande e imprevisível família, que não dá as costas à um dos seus. É este sentimento de pertencer a algo, a algum lugar, que propulsiona a trajetória de Star e também a narrativa do filme, que trabalha muito bem também a relação entre a protagonista e o personagem de Jake (Shia LaBeouf, ótimo mais uma vez), que progride da amizade para uma frenética paixão, o que é claro, causará problemas para a dupla.

rs-american-honey-01-4ca430a5-153c-4739-a85c-042957e6a320

Longo (2h44min.) de duração, Docinho da América exige bastante de seu espectador. O ritmo é lento, e a produção se arrasta bastante em sua metade, abusando de tomadas contemplativas que dispersam um pouco o espectador, mas que compensam por sua bela fotografia, à cargo de Robbie Ryan (do drama Philomena e do Western A Caminho do Oeste). Entretanto, o tom denunciatório da produção está sempre presente na narrativa, o que é um impulso a mais para o filme. É sempre impressionante ver o nível de degradação ao qual chegou a sociedade atual, e o terrível efeito que tal degradação causa nos jovens que surgem deste cenário de abandono e desprezo. É claro que não precisamos assistir ao filme para saber em que pé estamos, como sociedade. Tudo está à beira do colapso, e é triste admitir, mas temos uma geração inteira praticamente perdida em uma assustadora falta de valores e rumo. Sem um futuro ou mesmo uma pífia perspectiva de um.

É quando escancara este derradeiro declínio em que o mundo se encontra, e em como as crianças e jovens pagam diariamente por isso, seja com seus corpos judiados pelos vícios e a promiscuidade, ou por suas personalidades estilhaçadas pela solidão, incompreensão e inimicícia, que Docinho da América encontra sua verdadeira linguagem. Dentro deste contexto, o filme ganha em veracidade, graças também a seu jovem e vibrante elenco. A diretora Arnold queria trabalhar com atores desconhecidos, e várias vezes ao longo das filmagens abordava jovens na rua, e realizava audições imediatas com alguns deles, a maioria em estacionamentos. A naturalidade dos jovens intérpretes da produção é visível (a sequência em que todos na van cantam a música que dá nome ao filme, performada pela banda Lady Antebellum, é genuinamente emocionante), mas é claro que o destaque vai mesmo para os nomes mais conhecidos do elenco, em especial o cada vez melhor Shia LaBeouf, que mostra-se um intérprete cada vez mais completo e destemido. A protagonista estreante Sasha Lane acaba desapontando um pouco. Falta carisma para a intérprete, mas ela chega lá.

A produção também ressente-se de uma conclusão um pouco mais satisfatória. Não estou aqui pedindo um final feliz, vejam bem, mas de fato falta à produção uma mais inerente sensação de encerramento, de fechamento de um ciclo. O filme demarca tão claramente o ponto de partida e as razões da protagonista, que deveria também demarcar um turning point em sua dura trajetória. Contudo, Docinho da América entrega uma conclusão tímida, e um tanto ambígua, mas que oferece, ao menos, uma pequena dose de esperança. Antes fosse assim também com tantos jovens perdidos e deixados para trás em nossas ruas e abrigos. Infelizmente, sabemos que está longe de ser assim. Até a esperança está por um fio.

Docinho da América chega oficialmente ao serviço de streaming no país no dia 30 de Dezembro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Compartilhe esta notícia

Mais postagens