Crítica: Green Book: O Guia (Green Book) | 2018

Green Book

Em 1989, uma tímida porém emocionante produção roubou a cena na cerimônia de entrega dos Oscars daquele ano. O drama Conduzindo Miss Daisy (Driving Miss Daisy), bateu os favoritos Nascido em 4 de Julho e Sociedade dos Poetas Mortos na categoria de Melhor Filme, e ainda levou as estatuetas de Melhor Atriz para a veterana Jessica Tandy, Roteiro Adaptado e Maquiagem. Dirigido pelo sumido Bruce Beresford (que voltou a aparecer em 2016 com o drama Mr. Church, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), Miss Daisy comoveu e cativou multidões ao retratar a bela relação de amizade que se desenvolve entre uma judia abastada (Tandy) e seu motorista negro, interpretado pelo grande Morgan Freeman.

Mantendo praticamente o mesmo molde do filme de 1989, esta terna comédia dramática Green Book: O Guia (Green Book, EUA, 2018), nem parece que é dirigida por um dos responsáveis por filmes como Débi & Lóide: Dois Idiotas em Apuros e Eu, Eu Mesmo e Irene. Mas a história contada pelo diretor Peter Farrelly, sobre um motorista ítalo-americano durão do bairro do Bronx, que acaba responsável por levar um aclamado pianista negro de Nova York através do turbulento território sulista no ano de 1962, captura a fórmula em sua essência, servindo como um importante e tocante olhar sobre raça e classe na América, do tipo que os estúdios praticamente já não produzem mais. Trata-se de uma óbvia porém altamente apreciável obra de época, que arremessa o espectador para uma outra era do cinema de Hollywood, renascida neste novo século através do talento de dois dos melhores atores atualmente em atividade, que elevam a forma didática com que a história é contada para patamares muito mais altos.

Provando mais uma vez ser capaz de atuar em qualquer material ao qual é apresentado, Viggo Mortensen (de Capitão Fantástico, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), adiciona mais um nível às suas habilidades camaleônicas no papel do malandrão Frank Anthony Vallelonga, que prefere ser chamado pelo casual apelido de Tony Lip. Conhecido por não ser muito chegado em conversa fiada, Tony está disposto a fazer de tudo para sustentar sua família. Ele porém, acabou de perder o emprego que tinha em uma casa de shows, e agora está precisando urgente de uma nova fonte de renda. Ele então é convocado para uma “entrevista” com o influente pianista, Dr. Don Shirley (Mahershala Ali, vencedor do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por seu papel no drama Moonlight: Sob a Luz do Luar, cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli), que oferece a Tony dois meses de serviço como seu motorista, com a missão de guiá-lo em uma tour de concertos que passará através de vários estados do sul dos Estados Unidos.

A química desta improvável dupla imediatamente toma conta da narrativa, onde o temperamento do músico é um completo mistério para Tony. Ele também fica confuso com relação à impressão de que Don o considera racista, o que ele claramente não é. Então sim, Green Book é uma daquelas histórias sobre dois caras de mundos completamente diferentes que se unem contra as dificuldades e o preconceito de uma época onde o termo tinha um peso muito maior. Contudo, Farrelly aborda o material com extrema confiança, à medida em que a dinâmica entre os protagonistas os faz superar uma série de complicações, a maioria delas relacionadas ao racismo enfrentado por Don ao longo da viagem, e onde Tony acaba tendo que intervir com toda sua “delicadeza”.

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Apesar de ocasionalmente utilizar o arquétipo do “salvador caucasiano”, o roteiro mantém o foco em ambos os personagens, especialmente pelo fato de se tratar de uma história real. O roteiro é co-escrito por Nick Vallelonga, filho de Tony na vida real, e ele parece extrair com eficiência as vívidas memórias de seu pai com relação à experiência. Teria dado um charmoso documentário; ao invés disso, é uma verdadeira demonstração do talento de seus protagonistas.

As melhores cenas do filme se desenrolam enquanto Tony dirige pelas rodovias, falando pelos cotovelos enquanto Don aos poucos começa a se acostumar com a personalidade de seu motorista. E à medida em que o carismático Don apresenta Tony ao frango frito e à boa música, a dupla confronta seus próprios preconceitos com relação ao estereótipo internalizado que carregam um do outro. O gap entre o que Tony entende sobre a mente culta e os padrões culturais de Don rendem ótimas passagens ao filme. Uma das mais divertidas e espontâneas sequências do filme, por exemplo, acontece quando Don fica chocado com o fato de Tony nunca ter ouvido falar de Aretha Franklin e outros nomes da música negra americana da época. É maravilhoso poder acompanhar os talentos de Mortensen e Ali de maneira tão vívida como nesta e outras sequências mais provincianas do filme.

Em alguns momentos, fica a impressão de que Green Book foi feito há várias décadas atrás, num efeito semelhante ao do excelente The Old Man & The Gun, despedida das telonas do ator Robert Redford, e cuja crítica você também pode conferir aqui no Portal do Andreoli. Contudo, a produção falha um pouco na maneira repetitiva com que aborda as dificuldades enfrentadas por Don devido à cor de sua pele. Em várias ocasiões, Tony é obrigado a entrar em ação para livrar Don de vários tipos de sectarismos, como uma briga em um bar somente para brancos, policiais racistas que abusam da autoridade, e um restaurante segregado que se recusa a atender o músico.

Tais passagens encorpam uma narrativa que acaba ficando cansativa depois da repetição de variações da mesma complicação. Entretanto, Farrelly consegue equilibrar as referidas cenas com um delicado balanço entre humor e vibrações agridoces, que curiosamente aparecem nas comédias despretensiosas que dirigiu ao lado de seu irmão, Bobby Farrelly. Patifarias à parte, não há muita diferença entre as trajetórias emocionais de Green Book e um Quem Vai Ficar com Mary?, por exemplo. Mas é claro que Green Book é um drama propriamente dito, que aborda seus temas com seriedade e também delicadeza, como na maneira em que ilustra a preocupação de Tony com a esposa que está em casa (a bela Linda Cardellini, da série Mad Men). São muito bacanas os momentos em que Tony tenta descrever passagens de sua viagem para ela em uma carta, e Don entra em cena para auxiliá-lo com as palavras.

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O laço entre os dois homens se fortalece com uma boa dose de autenticidade, que vai desde a maneira com que falam um com o outro ou no modo com que lidam com as tensões que surgem entre eles. E acreditem, elas surgem e são relevantes para o profundo contexto racial e social que espreita por trás da narrativa. Neste cenário, brilham as performances colossais da dupla de protagonistas.

Mortensen habita o personagem com veracidade e profundidade (especialmente em um monólogo onde em certo momento ele diz à Don que é “tão negro quanto ele”). Já Ali, em seu primeiro grande papel depois de seu Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pelo drama Moonlight, transforma em realidade um papel que em outras mãos, poderia cair instantaneamente na caricatura. Um artista brilhante, incapaz de expressar por completo as muitas facetas de sua personalidade, Don está no centro de uma encruzilhada na qual a América se encontra, mesmo hoje, no que concerne as atitudes envolvendo o racismo. O filme porém, sabiamente evita os excessos na discussão desta questão, deixando a história seguir em frente até sua estimulante conclusão.

Produzido com elegância clássica dos grandes estúdios, Green Book transcorre de maneira suave, embalado por uma boa trilha-sonora repleta de muito jazz e fulgurantes detalhes da época na qual é ambientado. A fotografia de Sean Porter (do ótimo thriller Sala Verde, 2015), se destaca na maneira com que captura a essência e a textura da América no período, com seus bares esfumaçados e estradas ainda vazias. Porter ainda destaca com habilidade as performances musicais da produção, preparando o palco para um extraordinário concerto de piano que acaba revelando-se uma mensagem multi-cultural muito mais eficiente do que estamos acostumados a ver em outros filmes de maneira muito mais explícita.

Como se Green Book não tivesse flertado com boa parte dos clichês que envolvem seu tipo de narrativa (o que não é o caso), o filme ainda entrega uma típica conclusão natalina, onde a ênfase mais uma vez está na natureza amistosa e bem-intencionada do filme. De qualquer modo, a produção mantém um ar não-apologético enquanto segue adiante, e Farrelly nunca perde o tom de boas-vindas do filme. Uma crônica sobre dois homens de mundos opostos que encontram um terreno em comum, Green Book: O Guia é um esforço honesto sobre a importância da amizade e da tolerância, e seria tremendamente injusto de minha parte condená-lo por isso.

Green Book: O Guia estreia nos cinemas brasileiros no dia 24 de Janeiro de 2019.

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