Crítica: Hereditário (Hereditary) | 2018

Mesmo com relativamente pouco tempo na praça (fundada em 2012), a pequena produtora e distribuidora norte-americana A24 já se tornou sinônimo de cinema de qualidade. O vencedor do Oscar de Melhor Filme do ano passado, Moonlight: Sob a Luz do Luar; os dramas Docinho da América, A Ghost Story, Krisha e Bom Comportamento; a comédia Um Cadáver Para Sobreviver; os thrillers Ao Cair da Noite e The Killing of a Sacred Deer; e os recentes Projeto Flórida e Artista do Desastre, são apenas alguns dos excelentes títulos do catálogo da companhia, que a cada ano se fortalece dentro do cinema norte-americano e mundial. Vale ressaltar que TODOS os filmes mencionados acima têm a crítica disponível aqui mesmo no Portal do Andreoli.

Não é novidade, portanto, que este horror Hereditário (Hereditary, EUA, 2018), uma das novas empreitadas da A24, tenha se revelado mais um filmaço, que arrancou aplausos em sua exibição no Festival de Sundance deste ano, que lhe renderam comparações efusivas à outros títulos recentes do gênero, como Corrente do Mal (It Follows) e O Babadook (The Babadook), ambos lançados em 2014, e que também tiveram sua primeira exibição em Sundance.

Hereditário revela-se uma produção tremendamente incômoda, o tipo de horror que se alimenta de emoções humanas como o luto e o ressentimento para se transformar em um absoluto pesadelo. Escrito e dirigido pelo jovem estreante Ari Aster, Hereditário carrega uma roupagem que remete aos trabalhos mais relevantes do mestre Roman Polanski e também do grande Dario Argento, cineastas que não tinham medo de trabalhar o horror de maneira mais simbólica e evocativa do que exemplares mais tradicionais do gênero vinham se acostumando a mostrar. Na verdade, a maneira com que Aster desafia as tradicionais expectativas garante ao filme até um ar divisivo, que tem tudo para perdurar por muito tempo nas rodas de conversas e debates cinematográficos.

A sempre competente Toni Collette (O Sexto Sentido) entrega aqui possivelmente a melhor interpretação de sua carreira no papel de Annie Graham, uma artista (ela projeta modelos em miniatura que frequentemente replicam sua própria vida e casa) e mãe de dois adolescentes, Peter (Alex Wolff, de O Dia do Atentado, cuja crítica você também confere aqui no Portal do Andreoli), e Charlie (Milly Shapiro). Annie é casada com Steve (o ótimo Gabriel Byrne, de Os Suspeitos e Fim dos Dias), e no início do filme, Annie está lidando com o luto, após a morte de sua mãe, de quem ela estava um tanto afastada. O turbilhão de emoções que surge quando um indivíduo perde alguém de quem não particularmente gostava, é incrivelmente capturado por Collete; Annie não está tão triste quanto ela “deveria” estar, mas ainda há algo no ar em torno da família Graham. E não só pelo fato de que Annie possa ou não ter visto o fantasma de sua mãe no canto de seu estúdio.

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Para complicar ainda mais, pouco tempo depois algo terrível acontece com os Graham, e quando eu digo algo terrível é porque trata-se de algo realmente cabuloso, do tipo que faz com que o espectador pause o filme e coloque-se a ponderar se deve seguir em frente ou não. Apesar de eu não culpar o espectador que se recusa a seguir em frente, eu devo aconselhá-lo a perseverar; o tal acontecimento não só é um tremendo e corajoso turning point para o filme, como também dita o forte ritmo de tudo que vem à seguir na produção. É notável a mão firme do estreante Aster, que dirige seu filme com extrema confiança através de uma narrativa tão constante quanto uma montanha-russa, que sempre empurra o espectador adiante, amarrado e assustado em seu assento. Normalmente, os cineastas do gênero horror utilizam a tragédia para abrir a porta para o sobrenatural, mas nas mãos de Aster, a tragédia não entra através de uma porta, e sim através de uma cratera que derrama o espectador diretamente no inferno.

Contudo, nada em Hereditário funcionaria sem a espetacular performance de Toni Collette, que funciona quase que como uma extensão de sua performance indicada ao Oscar de O Sexto Sentido, dada a maneira com que a atriz e sua personagem lida com o luto e os mistérios do sobrenatural. Sua Annie seria uma personagem notavelmente complexa em qualquer tipo de filme, mas funciona especialmente no horror. Aster e Collette se arriscam ao traçar o perfil de uma mulher que pode não ser totalmente sã e nem mesmo gentil. Em dado momento, Annie menciona que sua mãe em vida poderia sofrer de esquizofrenia, levando à uma leitura um tanto suspeita do título do filme, e permitindo um certo ceticismo sobre o que de fato está acontecendo. E sendo ainda mais ousados, Collette e Aster permitem que Annie seja uma personagem pouco agradável para o público, que pode inclusive não ser muito chegada nem em seus próprios filhos.

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A entrega emocional de Collette se equilibra com a inegável habilidade de Aster para lidar com composição e design de som, em um filme que tem todos os sustos de um “Invocação do Mal” por exemplo, mas que está mais disposto a se arriscar narrativamente. Haverão diferentes interpretações sobre o que Hereditário realmente se trata, e este tipo de narrativa de horror “aberta” sempre enfurece os espectadores procurando por aquela já manjada história de “mocinhos contra vilões” (lembrem-se da recepção do recente Mãe!, por exemplo). Mas uma coisa é certa: As pessoas voltarão para conferir o filme mais uma vez. É um filme que assombra seus espectadores, no sentido literal da expressão, plantando aterrorizantes imagens em suas mentes. Mas que ao mesmo tempo exerce uma inegável atração, especialmente na maneira implacável com que trabalha os desígnios da morte e os traumas da vida.

Hereditário estreia nos cinemas brasileiros no dia 21 de Junho.

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