Crítica: O Irlandês (The Irishman) | 2019

O novo e talvez o mais aguardado filme de toda a carreira do grande Martin Scorsese, este O Irlandês (The Irishman, EUA, 2019), fez sua estreia mundial no New York Film Festival no final de setembro, e se caracterizou, desde o início das filmagens, como uma produção bastante controversa, principalmente pelo seu modelo de distribuição (falando aqui do mercado americano, é claro). Depois de seu lançamento comercial nos cinemas americanos no dia 01 de novembro, o filme ficará apenas algumas poucas semanas em cartaz antes de ser adicionado ao catálogo da Netflix, onde só poderá ser assistido exclusivamente por lá, à partir do dia 27. Na época do anúncio inicial, alguns puristas reclamaram. Com uma janela de exibição tão curta nos cinemas, seria O Irlandês um filme de verdade? A resposta: Sim, com certeza O Irlandês é um TREMENDO filme.

O Irlandês mostra um Scorsese mais vintage, clássico. Que utiliza movimentos de câmera sinuosos, ocasionalmente quebrando a quarta parede com monólogos, um humor bem ao estilo dos filmes de máfia do cineasta e explosões de súbita ternura e violência casual. E sua meia hora final arranca algo ainda mais profundo das entranhas do diretor: momentos de reflexão, pinceladas de arrependimento, preocupações sobre oportunidades desperdiçadas. Seja qual for o caminho que O Irlandês pretende seguir, tudo no final se resume ao talento sobrenatural de Scorsese como cineasta. Aqui, evidenciado com força total. Se em 2010 com Ilha do Medo Scorsese se reinventou no mundo dos thrillers, e em 2013 voltou a ser um diretor freneticamente energético com O Lobo de Wall Street, com este O Irlandês, do alto de seus 77 anos de idade, Scorsese se renova mais uma vez, dando uma roupagem diferente ao subgênero que praticamente estabeleceu sozinho.

O filme começa devagar, tomando seu tempo, com um inconfundível plano-sequência que é a cara de Scorsese. Desta vez, entretanto, nós não estamos adentrando um restaurante pelos fundos acompanhados de um mafioso como em Os Bons Companheiros, mas sim uma casa de repouso da igreja católica onde encontramos um envelhecido Frank Sheeran (Robert De Niro). O mistério de como ele acabou lá, sozinho, depois de mais de 40 anos de trabalho duro e decisões ainda mais difíceis, tomará boa parte das mais de três horas de duração da produção.

Abordar mais de quatro décadas em um mesmo filme normalmente exigiria um grande trabalho de maquiagem pesada e/ou mudanças no elenco; Scorsese decidiu por uma terceira opção, a de utilizar efeitos-visuais para rejuvenescer e envelhecer seus atores, principalmente De Niro. O resultado não é totalmente satisfatório, uma vez que os close-ups de um De Niro na casa dos trinta anos de idade não convencem inteiramente; há algo falso e sem vida em seus olhos, o que é definitivamente um problema; perder a força do olhar de De Niro é perder um pouco da força de sua performance. Mas estas são apenas algumas tomadas ocasionais em um filme de mais de três horas de duração, onde todo o restante rapidamente compensa tal deslize.

Entre estes fatores compensatórios está Al Pacino, no papel de Jimmy Hoffa. O pontapé inicial da história de O Irlandês mostra Sheeran começando sua carreira como um caminhoneiro com uma queda para a corrupção. Competente e esforçado, ele logo é promovido a capanga da Máfia, e em dado momento da produção, seus empregadores decidem que o líder sindicalista interpretado por Pacino – outrora uma fonte confiável da instituição criminosa – está enrolado até o pescoço devido à investigações do governo em torno de sua pessoa. Sem falar que seu temperamento explosivo por si só já é visto como uma ameaça pelos cabeças do crime organizado. Sheeran é então despachado para ajudá-lo, e talvez até atraí-lo de vez para os braços da corporação.

Hoffa, entretanto, não pode ser contido. E é claro, nem Pacino. Esta tem sido uma característica, e em alguns casos, um problema com suas performances por anos; frequentemente, como forma de manter-se interessado ou mesmo manter seus parceiros de cena em alerta, o ator cultiva o costume de começar a gritar ou reproduzir os diálogos utilizando ênfases exageradas. Ele continua a fazer o mesmo aqui, mas neste caso o contexto do personagem está totalmente de acordo com a interpretação. A falha fatal de Hoffa, a que lhe custou a vida, era sua personalidade impulsiva e errática, e isto o tornou um perigo para seus empregadores. Pacino interpreta esta imprevisibilidade de maneira brilhante, às vezes utilizando-se de longas pausas enquanto parece estar à procura de uma palavra, e nos momentos onde explode com emoção agressiva, como por exemplo na cena em que lidera um protesto do sindicato.

De Niro e seu parceiro de cena, Joe Pesci, são muito mais controlados. O educado e filosófico mafioso de Pesci, Russell Bufalino, é o cabeça por trás das decisões sobre quem vive e quem acorda com a boca cheia de formigas. Ainda que o personagem afirme ao longo do filme não apreciar a violência, ele reconhece sua ocasional necessidade. Já o Sheeran de De Niro mostra-se desconfortável em lidar com qualquer tipo de emoção, seja ela qual for. Contudo, Sheeran nunca se arrepende ou mesmo parece refletir nas consequências de suas ações. Isso até os minutos finais e melancólicos do filme, quando começa a constatar que ele próprio afastou sua família, traiu seus amigos e não tem nada para mostrar além de um relógio de ouro que recebeu em um jantar/homenagem cerimonial da Máfia. O tom dos momentos conclusivos de O Irlandês se assemelham bastante aos do clássico O Poderoso Chefão: Parte II, mas ao invés de ter ordenado a morte solitária e miserável de seu irmão, Sheeran simplesmente assegurou a sua própria.

Visualmente, O Irlandês mostra Scorsese – depois da agoniante jornada espiritual de Silêncio (crítica aqui), em 2016 – se divertindo novamente. O impecável design de produção usa e abusa das referências à cultura pop vintage de tal maneira que deixaria Quentin Tarantino tonto; Restaurantes, supermercados e celebridades famosos na época são lembrados o tempo todo com um delicioso ar nostálgico, que permeia inclusive a participação especial do grande Harvey Keitel, colaborador habitual tanto do citado Tarantino como do próprio Scorsese, com títulos como Caminhos Perigosos, Cães de Aluguel, Taxi Driver e Pulp Fiction no currículo. O filme também carrega uma atmosfera vibrante e musicada, que utiliza-se até de letreiros pop-up que contam para o público o destino de alguns dos criminosos da trama. Tudo editado de maneira frenética pela parceira de Scorsese, Thelma Schoonmaker, que leva o público com naturalidade para o passado e de volta para o presente.

O Irlandês é aquele aguardado retorno de Scorsese ao que o diretor faz de melhor: detalhar os níveis da pirâmide do crime. Sua trinca original de filmes sobre a Máfia – Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros e Cassino – é praticamente um estatuto do cinema de crime, e se O Poderoso Chefão de Coppola examinava o crime por um viés corporativista, os filmes de Scorsese forneciam as planilhas por trás desta visão, iluminando como alguém “sobe na vida” dentro do crime organizado, começando lá de baixo, subindo para “gerente” e chegando a “executivo”. Com seus filmes, Scorsese mostra que de fato, o crime é um negócio como qualquer outro. O Irlandês, entretanto, é um pouco mais randômico em sua abordagem, assim como seu protagonista; depois de bater muito a cabeça por aí, Sheeran se depara com o que parece ser algo bom, e ele agarra tal oportunidade com ambas as mãos, fazendo o trabalho sujo ano após ano até que um dia ele já se torna digno de ganhar um jantar e aquele relógio de ouro.

A brilhante carreira de Scorsese, entretanto, tem sido ao longo dos anos muito mais deliberada. E este nostálgico O Irlandês funciona como uma espécie de jantar cerimonial para o próprio diretor, frequentado por todos seus antigos amigos e também por nós, o público pagante. Sem dúvidas, Scorsese merece a presença e o prestígio de todos nós.

O Irlandês estreia no catálogo da Netflix no dia 27 de novembro.

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