Crítica: Perfeitos Desconhecidos (Perfectos Desconocidos)

Quem leu minha crítica da recente comédia O Bar (El Bar/The Bar) aqui mesmo no Portal do Andreoli (aliás, uma das críticas mais lidas sobre o filme na internet), sabe do meu apreço pelo cinema do diretor espanhol Álex de la Iglesia, dono de obras interessantíssimas (e amalucadas) no currículo, como O Dia da Besta (El Día de la Bestia, 1995) e Perdita Durango (1997). Neste seu novo filme, Perfeitos Desconhecidos (Perfectos Desconocidos, ESP, 2017), Iglesia deixa de lado seus inventivos roteiros originais para dirigir este que é um remake de uma ótima produção italiana homônima, dirigida por Paolo Genovesi no ano passado. Esta curtíssima distância entre o lançamento do filme original e esta refilmagem em nenhum momento chega a ser um demérito, já que nas mãos de Iglesia e seu roteirista habitual, Jorge Guerricaechevarría, o filme ganha em eletricidade e no tradicional verniz ácido do cineasta.

Numa noite de eclipse lunar, onde as ruas da cidade de Madri parecem estar uma loucura, o casal Alfonso e Eva (Eduard Fernández e Belén Rueda) estão nos preparativos para um jantar que será realizado em sua bela casa. Apesar de tudo na vida dos dois profissionais bem sucedidos parecer estar as mil maravilhas, o casal, assim como toda a cidade do lado de fora, está com os nervos à flor da pele. Um dos casais convidados para o jantar, Eduardo e Blanca (Eduardo Noriega e Dafne Fernández), também não está em seus melhores momentos: ela quer se casar, ele não; ela quer ter um filho; ele não. O mesmo pode ser dito de Antonio e Ana (Ernesto Alterio e Juana Acosta), que com dois filhos em casa, estão à beira do divórcio. Outro convidado é Pepe (Pepón Nieto, de As Bruxas de Zugarramurdi, outro filme de Iglesia), um professor cuja noiva está doente e que não pode comparecer ao jantar. Ou seria isso uma desculpa?

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O que consistiria em apenas mais uma reunião entre os amigos, como tantas outras antes desta, toma um rumo inesperado quando no meio da conversa, surge uma ideia: “Por que não fazer algo diferente? Vamos jogar um jogo!” O tal jogo consiste no seguinte questionamento: E se todos os convidados deixassem seus celulares destravados em cima da mesa, ao alcance de todos? Chamadas, SMS, Whatsapps, notificações de Instagram e Facebook, a vida inteira compartilhada por um instante, com todo mundo. Seria um jogo inocente ou uma proposta perigosa? Poderá o grupo de amigos suportar tal grau de sinceridade, ainda que seja apenas por um curto espaço de tempo?

Perfeitos Desconhecidos não chega a ser um teatro filmado (a narrativa visual é sempre potente nos filmes de Iglesia), no entanto, o filme carrega consigo uma alma teatral, abundante em diálogo e centrada em personagens que interagem em um cenário limitado. O trabalho dos atores, por consequência, é essencial em uma película que independe da ampla construção cinematográfica habitual. E nenhum membro do elenco decepciona, isso é fato.

Os protagonistas são amigos de toda uma vida, e que através de uma simples brincadeira descobrem que na realidade não se conhecem. O que tradicionalmente se guardava apenas na cabeça e no coração, hoje em dia está ao alcance de qualquer um, através da internet, redes sociais, mensagens de texto ou Whatsapp. O revelador questionamento que fica é se convém que os demais conheçam nossos segredos, sendo que a mentira e a máscara são a única opção para ser feliz, ou ao menos, manter uma ilusão de ordem e felicidade, o que é melhor do que nada. Dentro deste cenário onde o lixo que todos nós humanos carregamos dentro de nós em maior ou menor medida é desenterrado, pelo menos a parte cômica deste processo serve para Ernesto Alterio e Pepón Nieto se destacarem mais dentro do elenco.

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Se Almodóvar ensinou aos espanhóis que o cinema contemporâneo do país podia ser “exportável”, Álex de la Iglesia foi quem abriu o caminho para gêneros e estéticas que pareciam quase proibidas na Espanha, sem precisar imitar modelos estrangeiros e nem perder a identidade cultural de seu país. Creio que já seja possível classificar Iglesia como um cineasta veterano (parece que foi ontem que seu Ação Mutante surgiu nos cinemas em 1993), e como em quase todos os seus filmes, o diretor introduz chaves esotéricas de maneira mais ou menos sutil (como por exemplo a tatuagem de uma das personagens, que remete à um possível cataclismo cósmico) e que dão ao longa-metragem uma atmosfera mágica, que contrasta com o realismo da situação.

Resumindo, Perfeitos Desconhecidos se ressente um pouco da visceralidade de outras obras de Iglesia, como Balada do Amor e do Ódio (Balada Triste de Trompeta, 2010) ou Muertos de Risa (1999), porém consegue equilibrar com maestria o humor ácido do diretor com cenas realmente tensas, além de trazer uma mensagem sinistra sobre os nossos tempos de vício tecnológico, que em alguns casos pode arruinar a vida do indivíduo com uma simples mensagem no Whatsapp. Quer uma dica? Se você não está totalmente à vontade em deixar o conteúdo de seu celular ao alcance de alguém (leia-se seu cônjuge), melhor assistir ao filme sozinho. Vai lhe evitar bastante dor de cabeça…

Perfeitos Desconhecidos não tem previsão de estreia nos cinemas brasileiros, e deve chegar ao país diretamente em serviços de streaming.

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